Por Yndiara Macedo
“Como se ela não tivesse suportado sentir o que sentira, desviou subitamente o rosto e olhou uma árvore. Seu coração não bateu no peito, o coração batia oco entre o estômago e os intestinos.”
Clarice Lispector
Foi um beijo rápido, estalado na bochecha. Ele saiu depressa, como se fugisse de algo, talvez do beijo.
Ela ficou ali parada, um pouco boba e muito deprimida. O tempo passara depressa dentro do teatro e ela teria que voltar para casa, que era tudo o que não queria. Sua casa estava uma bagunça, vazia de risos, de ideias, de companhia. Como uma casa assombrada com os móveis ainda novos. Nova por fora, velha por dentro.
De repente, aquele beijo. Fazia tempo que ela não o via. Ela tinha o quê, uns vinte e poucos anos quando se reuniam para saraus inesperados, regados a vinho e riso e, para alguns, marijuana. Talvez ele fosse mais magro, pela agitação e intemperança da juventude, aquela sanha de viver tudo num dia só. Era assim que ela mais se lembrava dele: o moço que, como ela, queria sorver o tempo de um gole só, para que não existisse. Até discutiam Nietzche e Sartre, o Tudo e o Nada e tudo era absurdo. Mas nada era impossível. De repente, era como se o nada tivesse se instalado e o tempo, sorvido num gole só, se acabara. Ela pensava para onde fora o riso, a inconsequência, a alegria por apenas viver. Apenas ser. Quando o ter nada importava. Agora, ter nada importava muito. Era preciso ter tudo: a casa bonita, o carro zero, a roupa de boutique, a previdência privada, a capitalização do futuro. Para o futuro.
O beijo estalado lhe apontava o passado. Puro desperdício. Tempo não volta, depois de sorvido, ainda mais com a sede dos jovens. Ela, velha e feia, sentiu-se de novo a jovem risonha que pouco se importava se não cabia no manequim da moda. Que andava a pé, que escolhia os namorados a dedo, pelo cérebro. Ela, velha e feia, lutando contra a flacidez do tempo nas academias, nos antirrugas da vida. Um beijo estalado era melhor que qualquer cirurgia plástica, mas fora breve como a juventude deles, e ele, como a juventude dela, se fora, depressa.
Ela sabia que ele se divorciara, pela segunda vez. Talvez ainda fosse o jovem impulsivo. Talvez, diferente dela, não conseguisse ser acorrentado pelos almoços de sábado e os churrascos de domingo. E, naquele espaço de décimos de segundos em que os lábios dele tocaram a sua bochecha, ela viveu uma outra vida. Sem IPTU pra pagar, sem fatura de cartão de crédito, sem mensalidade do curso do Junior, sem o vazio da casa cheia de prata e cristais. Uma existência de felicidade e livre escolha, de ir e vir, de banhos de chuva de verão, mergulhos no mar, modorra preguiçosa na areia morna do fim de tarde na praia. Vida que não envelhecia, que por dentro era sempre nova. Sempre bela. “Viver sem tempos mortos!” Viva Beauvoir! Mas ela Também estava morta.
O nano-segundo acabara. O tempo se esvaíra e ele se fora, deixando apenas a sombra do que fora um beijo. Ela sorriu, educada, e esperou o marido, que abotoava o terno, ajeitava a gravata. Aceitou o braço onde aprisionou a mão ofuscada pelo solitário brilhante. Com a mão que lhe restava solta, acariciou a face um pouco úmida do beijo presente, tão depressa passado.
E como quem sabe que o tempo seca tudo e não espera ninguém, ela seguiu o marido, assombrada. À sombra daquele beijo.