terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Adélia Prado

Como eu pude passar a vida sem Adélia Prado???? 

Casamento
 Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Amadurecendo Sentidos ( A propósito do texto do Affonso)

Affonso Romano de Sant'Anna foi meu Mestre em Literatura Brasileira, na UFRJ. Tenho foto do dia em que, na sala de aula, ele autografou-me " O Canibalismo Amoroso". Preciosas lembranças. Eu sou antiga, de um tempo em que ainda se dava mais valor a sentimentos, pessoas e não à imagens, Big Brothers, futilidades. Eu sou do tempo em que a gente esperava o carteiro e as cartas eram longas, personalíssimas. Algumas eram perfumadas. Me digam, como enviar um email ou um post perfumado? Sou a favor da tecnologia, mas infelizmente ela nos rouba a sensação real. Uma rosa que você toca, sentindo a textura da pétala junto com a da mão que a colheu, não é a mesma rosa que você vê na telinha do computador. O viço de uma flor seca entre as páginas de um diário é maior do que o de um buquê virtual, porque quando a velocidade da luz traz a imagem do lindo buquê, ele já está morto a milhões de ano. A flor que seca entre os cadernos deixa ali o seu aroma e, mesmo morta, é viva porque real. Affonso me emocionou às lágrimas com o seu texto e porque ele me lembrou que ainda há gente antiga o suficiente para gostar dos sentidos e de sentir-se vivo. Em tempos de filosofia fast food e mensagens superficiais, viva o meu mestre e sua poesia sobre mulheres cuja perfeição alcança um estágio incompreensível para quem só pensa em ser uma daquelas garotas do faustão ou do gugu, com letra minúscula mesmo, porque isso é ser minúsculo. A beleza fundamental de Vinícius, pouca gente entendeu. Hoje, madura, eu posso afirmar que ela é fundamental, pois é a beleza dos sentidos.
Affonso, caro Mestre, este texto partiu da menina que você ensinou e hoje floresceu.
Yndiara Macedo

A Mulher Madura

A Mulher Madura
Affonso Romano de Sant'Anna

O rosto da mulher madura entrou na moldura de meus olhos.

De repente, a surpreendo num banco olhando de soslaio, aguardando sua vez no balcão. Outras vezes ela passa por mim na rua entre os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz grega, tem qualquer coisa de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.

Há uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando se esbanjam pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. É como um nadador principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim, desborda.

A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em torno de seus gestos tem algo do repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas, mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.

A mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.

A adolescente, com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos dentes e dos olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a sutileza de um oboé sobre a campina do leito.

A boca da mulher madura tem uma indizível sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros corpos. Por isto as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um aprendizado da macia paina de setembro e abril.

O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história. Inscrições se fizeram em sua superfície. Seu corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade respeitosa.

Sei que falo de uma certa mulher madura localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo se reveste de uma marrom tristeza.

Na verdade, talvez a mulher madura não se saiba assim inteira ante seu olho interior. Talvez a sua aura se inscreva melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos revelador.

Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que cada um descubra o fulgor do próprio corpo.

A mulher madura está pronta para algo definitivo.

Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde acompanhando com o complacente olhar o vôo das andorinhas e as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades. Por isto, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta jóias. As jóias brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se fossem prendas do tempo.

A mulher madura é um ser luminoso é repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.

Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

É o fim do Mundo!

Entramos em 2012.
Há pessoas já desesperadas com o fim do mundo, outras fazem piadas, o google está cheio de cartuns e charges acerca do anunciado apocalipse.
Mas afinal, o que é o fim do mundo?
Qualquer cultura e civilização possui sua escatologia. Qualquer texto religioso tem fim apocalíptico. A Bíblia com seus quatro cavaleiros, línguas de fogo e águas convertidas em sangue; os Vikings tem o Ragnarok, o crepúsculo dos Deuses, enfim todas as religiões anunciam o fim dos tempos  Entretanto, a maioria esquece que ao apocalipse segue-se a gênese. A natureza reforma-se, ou , como diz Lavoisier, transforma-se. Nada é estanque. Nada permanece. Tudo passa e tudo é passagem. Então, como passaremos pelo fim do mundo? Ainda não sei, mas passaremos. Passaremos sim. Porque fim do mundo não é a Estátua da Liberdade boiando após um dilúvio nem o Cristo Redentor desabando diante de um tsunami.
Fim do mundo é o estado atual das coisas: corrupção ativa e passiva que continua impune, uma população que vende o voto por geladeira velha, ticket de cerveja, cesta básica, favor de um dia, para depois passar quatro anos sem aumento de salário, sem emprego, sem melhoria na comunidade, nas ruas, enquanto os senhores eleitos enchem os bolsos e aumentam seus próprios salários, ganham jetons para cumprirem o seu dever e comparecerem  ao plenário.
Fim do mundo é essa criançada cada vez mais mal educada por pedagogias inovadoras e "modernosas" que não renovam mas desintegram. É essa juventude alcoolizada, drogada, prostituída pelos Big Brothers da vida.
Fim do mundo é bandido amparado por lei e direitos (des)humanos que nunca vão prestar solidariedade à família da vítima brutalizada, violentada, assassinada.  É cidadão que mora atrás das grades da sua casa, mais fortificada que os presídíos, sem segurança máxima.
Fim do mundo é estarmos entre as dez maiores economias do planeta com um salário mínimo menor que o valor do aluguel, enquanto os senhores políticos ganham ( e roubam )  milhões às nossas custas.
Fim do mundo é ter que pensar em lei anti homofóbica, anti racismo e Marias da Penha, quando a real estruturação das famílias preveniria a violência com a pedagogia da tolerância e do respeito, criando uma sociedade em que eu entendo que sou igual porque sou diferente.
Fim do mundo é orfanatos cada vez mais cheios e adoção cada vez mais difícil.
Fim do mundo é ver professor apanhar de aluno, bombeiro e policial ganharem menos que caras que  dão pontapés em uma bola  ( e a maioria nem decide, dá vexame ).
Fim do mundo é esta crônica, que, se não fosse o fim do mundo, não precisava ser escrita.

Yndiara Macedo
02-01-2012