segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Carta ao Cidadão Brasileiro


    Hoje recebi uma postagem no Facebook e quero comentá-la  por considerar importante o relato. A postagem vai transcrita após este texto, mas em resumo, uma amiga presenciou violência, falta de segurança e uso de drogas em um evento ocorrido num clube da cidade em que ambas residimos.  Resido em uma cidade do interior para a qual eu e minha família viemos em busca de mais qualidade de vida, em especial segurança pública e valores familiares. Por essas e outras, escrevo essa carta aberta aos cidadãos brasileiros:

Ao Cidadão Brasileiro,
       Caro conterrâneo:

       Sei muito bem que por diversas razões, valores estão se perdendo e que não é tarefa fácil falar de valores a uma sociedade cada dia mais individualista, egoísta e acéfala ( descerebrada, caso você não conheça a palavra). Tampouco, tal tarefa não é inglória. Basta ter objetividade e vontade.
      De nada adiantam discursos simplesmente moralistas e vazios. Educa-se, em primeiro lugar, com exemplo. Você pode dizer: e que exemplo tem nossa infância e juventude? Corrupção para todo o lado, impunidade, ladrões do dinheiro publico reassumindo altos cargos no Congresso, torcedores de futebol sendo presos no exterior e se escondendo atrás de um menor de idade, uma vez que menores podem praticar verdadeiras barbaridades neste país, com a aquiescência de leis brandas e ineficazes.
Precisamos de maior atuação das autoridades na fiscalização e punição de irregularidades que põem os cidadãos em risco! Pois é, cidadão: concordo, mas quem tem que exigir isso é você. E eu. Nós é que temos que lembrar aos Educadores para que o sejam com *E* maiúsculo e se lembrem de que Educar não é só "dar matéria" e preencher papeleta. Valores vêm da família, mas senso crítico e aprendizado da cidadania também se encontram na escola.
     Ah, não está feliz com o salário, cidadão brasileiro? Lute por ele, saia na rua, grite, manifeste-se, como você faz quando seu time perde, ou sua escola de samba é prejudicada. Você quebra estádio de futebol por causa de time, clube noturno por causa de mulher, pede a liberação da maconha. E fica calado quando o Calheiros e o Genoíno voltam ao poder, a coroa de louros mal disfarçando o cheiro da podridão. Nunca vi um panelaço por conta do aumento da gasolina, das tarifas de ônibus, dos juros abusivos. Você, brasileiro, derruba alambrados nos estádios e mata em nome do seu time. Vaia uma blogueira, defendendo a ideologia do governo Cubano. Nunca vi você arregimentar seus amigos e vizinhos para falar da buraqueira das ruas, dos esgotos a céu aberto, para exigir a devolução do seu dinheiro roubado pelos anões do orçamento, mensaleiros, toda essa gente que desfila de carro importado enquanto você anda como gado de corte nos trens da central, da CPTU, do metrô, ou tem o seu veículo retomado porque está desempregado, porque a inflação existe e mentem que não. Você vota nas gostosas do BBB, essa Big Bosta, e não lembra o nome do seu candidato na última eleição. Você troca o seu voto por favores pessoais, por uma geladeira de segunda mão, por meio par de sapatos, por uma possibilidade remota de ser ASPONE por quatro anos, por bolsa família de 30 contos ao mês, por 50 reais que não paga uma compra quinzenal enquanto o safado que lhe comprou está enriquecendo, trabalhando para o próprio bolso. É brasileiro, me desculpe, mas  eu vou ter que cassar o seu título de cidadão. Para recuperar é fácil: três doses de vergonha na cara  ao dia  que devem ser tomadas  com uma cáspsula de coragem. Omitir-se é fácil, mas o preço é alto. O gigante acordou? Que nada, continua deitado eternamente em berço nada esplêndido.

Yndiara Macedo


A seguir, a postagem no facebook:
Herika Varela
Show Raça Negra /Pixote/Papel.com - Itatiba EC

Lamentável alguns fatos, mesmo que isolados que ocorreram no evento!
Depois da Tragédia de Sta Maria passo a me preocupar em frequentar locais absurdamente lotados, e não foi diferente neste último sábado! (Embora esteja ciente das normas de segurança e equipe especializada que o IEC possui)! Não sei precisar qtas pessoas estavam no " clubão" mas certamente foi além do aceitável!!! Ninguém conseguia se mexer e não parava de lotar... Conclusão: onde paramos tivemos que ficar porque não era possível circular!!! Os seguranças "de preto" contratados ao invés de separar as brigas apaziguando a situação, brutalmente chegavam, sim de forma violenta para " separar" "gentilmente tirando a pessoa do salão" ( no Carnaval a equipe de Segurança do Clube não agiu dessa forma e tudo ocorreu bem mais tranquilo ao meu ver). Mais de um amigo pode presenciar no banheiro masculino a utilização escancarada de drogas, com carreiras feitas em celulares tipo " smartfone" "Onde está a revista da entrada???" Como passaram com droga para parte interna do Clube. Bom, no aperto, fila imensa para wc, pouco conseguindo ver o show, depois de outra imensa fila para comprar fichas para bebidas fui tentar pegar uma mísera "água" e estando de costas não consegui perceber uma briga e acabei sendo acertada com um belo " SOCO" em
meu ombro! Justo eu que nunca participei de uma briga...
Ahhhh não posso deixar de questionar que horas banda da cidade Papel.com fez seu show???
Que as falhas sejam sanadas para os demais eventos programados, assim seus sócios e visitantes poderão sair ao menos satisfeitos ajudando a falar bem do "clubão" como sempre ocorreu!!!

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

REFÉNS DO SILÊNCIO


Por Yndiara Macedo

Era alta madrugada quando  André fechou a porta de casa, cuidadoso para não romper o silêncio. Estava a caminho do banheiro quando ouviu a porta do quarto da mãe se abrir. Engoliu em seco, esperou. Talvez se tratasse só um golpe de ar inoportuno, para importunar-lhe os nervos. André prendeu a respiração, aguardando o momento para se mover, entrar no banheiro. Sua porção racional mostrava-lhe o ridículo da situação. Ele era um adulto de  30 anos que trabalhava, pagava metade do aluguel e outras despesas da casa. Pagava muitas contas para ter que prestar contas dos seus atos.  Ele abriu devagar a porta do banheiro. Ao som mínimo do “click” da maçaneta, ecoou a voz da mãe, amargurada.
- A essa hora, André Luiz?
A boca do rapaz abriu e fechou, mas a voz não saiu. Dizer o quê? Era tarde mesmo.
- Onde você estava até agora? E esse cheiro? Não é maconha, é?
- Não, mãe. É meu perfume... – respondeu André, num fio de voz. A mãe não ouviu, como sempre, ou entendeu o que quis. Como sempre.
- Só faltava essa! Meu único filho, maconheiro. Meu Deus, que vergonha teria seu pai. Em que companhias você tem andado?
André desistiu de se defender antes mesmo de tentar. Seria um esforço vão. Nascera condenado. Seu Júri era a família, desde o primeiro ancestral até o último bebê que nascera, de uma prima distante.  A promotoria era o mundo de gente normal, ordeira, temente a Deus. “ Bobagem” lhe dizia a consciência “ O mundo mudou. O que é ser normal?”.
Mas a consciência de André não conseguia ser seu Juiz. A menção ao pai lhe provocou o conhecido arrepio na espinha, que antecedia as memoráveis surras paternas, que ele levava de vez em sempre. O velho morrera havia sete anos, bem a tempo de André desistir da faculdade de Engenharia. Por dias ouvira a ladainha amargurada da mãe que o acusava de apunhalar o pai pelas costas. Logo ele, um homem tão bom, que queria ver o filho doutor, formado! Um homem tão bom!
                André despiu-se e foi para debaixo do chuveiro.  Um homem tão bom, pensava André enquanto deslizava o sabão pelo corpo cheio de marcas. Mas nenhuma era tão feia quanto as que havia na sua lembrança. A mais horrenda era do dia em que o pai o pegara na casa da vizinha, brincando de casinha. Ele tinha uma boneca nos braços, embalava-a com carinho. O pai o arrastara para casa pelas orelhas, trancou-se com ele no banheiro. Primeiro levou uma surra de cinta e socos até entortar.
- Onde já se viu de boneca na mão! Isso lá é coisa de homem?!
- A gente tava brincando de casinha... – murmurava o menino entre soluços.
- Homem não brinca dessas coisas! Casinha é coisa de mulherzinha!
- Mas eu era o pai! – chorava a criança, Quanto mais lágrimas, mais apanhava.
- Que pai que nada! Já me viu de bonequinha por aí?! E engole o choro. Aprende a apanhar que nem macho!
                O pai fizera ele se despir, agarrou-o pelos testículos e pelo pênis.
- Está vendo isso aqui? Olha, moleque!
André baixou os olhos cheios de dor para a os ainda pequenos órgãos. Tinha onze anos.
- Se eu lhe ver de bonequinha na mão, brincando com menina ou chorando que nem mariquinha eu vou cortar isso tudo fora e dar pros cachorros.  – sibilou o pai. Tinha o hálito carregado de cigarro, que fumava um atrás do outro e que o matou, aos 59 anos, vítima de câncer generalizado. 
- Um homem tão bom. – lamuriava-se a mãe, do corredor. – Não merecia isso.
                André enfiou a cabeça debaixo do chuveiro até que só ouvisse o barulho da água martelando sobre a cabeça. Desde os onze anos aprendera a apenas ouvir e calar, mesmo a dor. Ele não entendia porque era diferente, porque na escola gostava mais da companhia das meninas e ao ver novelas queria namorar os galãs e não as mocinhas. Não era de propósito, ele não escolhia ser assim, não escolhia ser espancado pelo pai nem escarnecido pelos outros coleguinhas.
- Mulherzinha! Mulherzinha! Mulherzinha! – gritavam os garotos na escola.
- Não sou não! – ele gritava de volta. E não era mesmo. André não era mulher, nem queria ser. Mas queria namorar o Indiana Jones e não a Madona. Não sabia por que e não tinha a quem perguntar. Cresceu isolado. Na adolescência, ia escondido na casa das amigas, dizia à mãe que ia jogar futebol ou fazer trabalho de grupo. Aos 18 anos seu pai lhe deu dinheiro para “ ir pegar uma dona”.  O rapaz não entendeu. 
- Uma dona! Mulher da vida! Puta! Prostituta! – rosnou o pai , tossindo com a fumaça do cigarro.  André pegou o dinheiro e saiu porta a fora, antes que apanhasse, sem saber para onde ir.  Ele obviamente sabia o que era prostituição, mas não onde encontrar. A simples ideia  de pagar por sexo o enojava. Será que o pai dormia com putas antes de dormir com sua mãe? Vomitou na calçada.  Mas aquele era o conselho de um homem bom. Seu pai. O modelo a seguir até o bordel mais próximo e deitar com uma desconhecida.
                O rapaz tomou um ônibus, foi até o ponto final. Esperou o tempo passar e pegou o último ônibus de volta. Foi a única vez que não apanhou ou levou sermão ao chegar tarde em casa. Os pais estavam recolhidos, ele se trancou no quarto. Escondeu bem o dinheiro dado pelo pai. Depois pensaria no que fazer com aquilo. Esmola na igreja, um presente pra mãe, qualquer coisa.
                Com o passar do tempo, André falava cada vez menos com o pai e só o necessário.  Passou no vestibular para Engenharia para escapar da surra certa se falhasse. A  mãe era uma figura apática, quase ausente da sua vida. Se o pai não era seu modelo, ela tampouco.  Ele vivia para dentro, na solidão e no silêncio.  Sempre o silêncio.
                Quando o pai estava nas últimas, foi vê-lo no hospital. Pouco restava de força no corpo magro esticado no leito. Com os pulmões, esôfago e faringe tomados pelo câncer, o velho já quase não podia falar, mas os olhos continuavam agressores. Foi com eles que fitou André, que estava sentado em uma cadeira, no canto mais distante possível. A mãe tinha ido ligar para uma das suas irmãs, aproveitando o horário de visitas.  André olhava para o relógio no pulso e para a porta, rezando para a mãe voltar logo e ele poder ir embora. Falar o quê? Das insuportáveis aulas de cálculo, das tediosas aulas de mecânica, da solidão nos intervalos ou na hora do almoço porque ele não era do time da cerveja nem do futebol de domingo, ou da caça à mulherada?  Nada tinha a dizer ao pai que não havia lhe deixado nem um resto, uma migalha de amor.
- Eu já vou indo... – André se levantou. Mais cinco minutos e encerravam-se as visitas – Mamãe já vem.
                Os olhos agressores do pai fitaram-no. A boca trancada numa expressão dura. O rapaz abriu a porta e ouviu a voz roufenha do pai chamá-lo.
- André...
                Ele se voltou. O pai tossia e respirava com dificuldade, juntando esforços para falar:
- ... eu sei o que você é.
                Essa foi a última frase que ele ouviu do pai. Cuspidas com algo pior que ódio. Um desprezo arrancado do fundo da alma tão tumorosa quanto o corpo.
André deixou a faculdade, arranjou um bom emprego graças às suas habilidades em informática, área da qual ele realmente gostava.  Conheceu outras pessoas, descobriu que havia outros iguais a ele: advogados, professores, arquitetos, psicólogos, vendedores, caixas de loja.  Gente. Aprendeu onde encontrar um pouco de atenção e de carinho, mas sempre discreto, sempre em silêncio. Amar se aprende amando e ele não tivera esse tipo de educação.           Na televisão, especialistas falavam em opção x orientação. André não optara. Ninguém opta por uma vida que é imposta à margem.  Tampouco fora orientado. Simplesmente era...  o quê? André engolia os próprios pensamentos, recusando-se a usar quer o rótulo quer o termo politicamente correto.  “Sou Humano” dizia-se, mas como não conseguia crer nisso, diante do olhar reprovador e severo da mãe que lhe cobrava esposa e filhos. André temia o olhar dos outros, olhava para dentro de si e via um abismo. Evitava espelhos, que o incomodavam.
                André fechou a torneira do chuveiro. Finalmente, a mãe cansara e fora dormir. Ele enxugou-se e foi para o quarto. Havia uma mensagem no celular. 
“ Me liga.  Tem churrasco amanhã. Elisa”
                Elisa era uma colega de trabalho. Loira, muito bonita, disputada pela homarada do escritório e do resto do mundo. Aproximara-se de André porque fora o único que não lhe passara uma cantada nos primeiros minutos de conversa. Tornaram-se amigos. André era bom ouvinte e se tornou confidente da moça. Diferente dele, Elisa não sofrera abusos na infância, nunca tivera problemas na escola ou na família. A não ser a incômoda mania da mãe e das tias de quererem bancar o cupido. Elisa contou a André como se horrorizava ante a ideia de acabar como a irmã, cujo marido a traía desde o tempo de namoro. Ou como as primas com os maridos grosseiros, entediados, mais interessados em futebol e cerveja do que no casamento ou nos filhos.
- Nem todo homem é assim. – Argumentou  André, lembrando do pai mas se sentindo na obrigação de não desiludir uma mulher tão doce e tão bonita. – Tem gente boa no mundo.
- Eu sei. – abriu um lindo sorriso – Não tenho raiva dos homens. O problema é o seguinte... entre o Indiana Jones e a Madona, eu prefiro a Madona.
                André demorou para encontrar a voz.  Como assim?  Ela era tão linda, popular.
- Por quê? – ele indagou. – Você tem uma vida tão tranquila...
- Minha vida é tranquila porque ninguém sabe dela.
                A partir dali, se tornaram quase inseparáveis.  André a levava em casa de vez em quando, e juntos enfrentavam as longas ladainhas da mãe dele, que queria netos, que sofria muito, que sentia falta do marido.
- Um homem tão bom...
                Por sua vez, André não se importava de acompanhar Elisa nas festinhas da família dela e admirar-se de como o mundo não reconhece impostores, quando não quer. Por isso,  no dia seguinte ele iria envergar sua melhor fantasia de macho e acompanhar Elisa ao churrasco, sorrir diante das piadinhas sobre quando eles iam parar com o papo de amiguinhos e “se assumir”.
                 Ambos amigos, aliados.
Reféns do mesmo silêncio.   

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Cidadania Cultural: Realidade ou Utopia? Uma Visão do Artista



Por
                                  Nestor Lampros e Yndiara Macedo

Utopia:  “tem como significado mais comum a ideia de civilização ideal, imaginária, fantástica. Pode referir-se a uma cidade ou a um mundo, sendo possível tanto no futuro, quanto no presente, porém em um paralelo. A palavra foi criada a partir dos radicais gregos οὐ, "não" e τόπος, "lugar", portanto, o "não-lugar" ou "lugar que não existe". ( Wikipedia)
Cidania Cultural:Segundo Bastos (2002:134), assinalou se por um lado a Constituição Federal trouxe um aporte significativo de leis que alcançaram um escopo fundamental de variáveis para a construção da cidadania cultural, por outro, tornou-se necessário um engajamento da sociedade organizada como forma dar sentido a essa nova ordem jurídica. Corroborando com esta ideia Soares (2001 )afirma que a promoção da acessibilidade aos bens culturais, enfatizando que ela cumpre as determinações da constituição Federal de 1988, quando consagra os direitos das portadoras de deficiência física e também proclama o direito a cultura, em seu artigo 215,seção II, da cultura:. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.”
“Patrimônio cultural é o conjunto de todos os bens, materiais ou imateriais, que, pelo seu valor próprio, devem ser considerados de interesse relevante para a permanência e a identidade da cultura de um povo.
O patrimônio é a nossa herança do passado, com que vivemos hoje, e que passamos às gerações vindouras.”  Wikipédia

            Segundo dicionários e iminentes filósofos, cidadania cultural é o direito de qualquer cidadão não apenas ao acesso à cultura como à sua produção e difusão. Entretanto, todos os textos aos quais tivemos acesso não tratavam da produção, do fazer a Arte. Ocupavam-se das teorias políticas, em especial as que rechaçam o neo liberalismo e privilegiam o que chamaremos, á falta de maior conhecimento teórico, de filosofia de esquerda. Nesses textos (incluindo a leitura de Marilena Chauí ), fala-se muito mais da necessidade do acesso á população aos bens culturais do que sobre sua produção, propriamente dita.

            Os bens culturais  no nosso país estão sendo respeitados de acordo com a própria visão de bem cultural- plenamente acessível a todos, protegido, veiculado e mantido pela sociedade? Pensamos que esta questão está sendo silenciada pelos próprios interesses que cercam os valores desses mesmos bens culturais.

O bem cultural não é monopólio de um partido, de um governo (se pudéssemos colocá-lo num extremo provável) tampouco é um bem passível de uso para promover interesses particulares que não deixam que este produto seja socialmente desfrutado, ou dividido, ou mesmo exposto.Nenhum desses extremos é positivo, nem mesmo condiz com o que consta no artigo 215, seção II da nossa Constituição. Na perspectiva desses extremos que mencionamos, a chamada Cidadania Cultural nada mais é do que pura Utopia, ou seja, um não lugar. Um conceito apenas sonhado, irrealizado.

            Nosso país é rico em cultura até porque a formação do Brasileiro é multicultural. Temos influências diversas desde as três etnias que se encontraram no descobrimento do país até as diversas etnias que se instalaram no Brasil ao longo do tempo (ariana, asiática, islâmica, semita, só para citar alguns exemplos). O Brasil, portanto é rico em manifestações culturais diversas ( e isso não é utopia), mas a cultura que o povo cria com sua peculiaridade  anda se prestando ao uso mercantilizado, devorando, mastigando e  triturando manifestações culturais autênticas para vomitá-las no mercado em uma pasta massificadora e alienante, sem preocupação outra que não o consumo rápido. Em vez de cidadania cultural, temos então a voracidade do capitalismo desenfreado, interessado em venda/consumo e que serve aos interesses de uma política cada vez mais corrupta e esta, por sua vez, serve e se serve de  uma “fast food cultural”.
           
Onde o artista nessa situação? Qual o seu lugar?
           
É nossa opinião que os bens culturais não são propriedade ou massa de manobra para politicagem. Não é um purismo que propomos, é uma garantia da  legitimidade e autonomia não apenas da cultura mas de seu produtor – a manifestação (autoria) popular, advinda de qualquer classe social . Vincular os bens culturais com a corrupção política e o mercantilismo  gera o monopólio do que não poderia ser monopolizado: a livre circulação do obra e seu artista, compromissado com sua arte, sua visão de si mesmo e do mundo que o cerca. Nem a Arte, nem o Fazer Cultural nem o Artista devem ser ferramentas de uma classe que tudo faz para tornar-se absoluta e perpetuar-se no poder.  Essa situação extingue a possibilidade da diversidade cultural, silenciando o legítimo criador e sua criatividade, bem como a sua liberdade em usar sua voz, sons,  palavras, cores e linhas, massas, corpo, intuições e emoções, de forma autêntica, sem manipulações, sem a preocupação de produzir obras que agradem ao seleto grupo daqueles que, por dever constitucional, deveriam difundir a Cultura/Arte de forma democrática. A corrupção e o mercantilismo (que hoje se apresenta no pomposo termo inglês “ marketing” ) sempre compromete a alteridade, em qualquer âmbito. Isso porque o supra mencionado poder se comporta como o reizinho mandão da fábula e está pronto para silenciar o discordante, naquilo em que sua produção difira de seus pontos programáticos ou mesmo quando deseja privilegiar seus escolhidos que obviamente estão conformes à uma visão particularista. A censura, agora, se apresenta de forma insidiosa e sutil, disfarçada em  “critérios de avaliação”, mas é o mesmo silêncio imposto pelas ditaduras. E pelos mesmos motivos: capital, controle, poder.
                       
Não podemos, porém, incorrer em outro extremo, ou seja, deixar a produção cultural nas mãos do mercado e apenas para esse fim. Isso também escraviza o artista, artesão, produtor cultural, que se vê nas mãos impiedosas do consumismo alienado que torna a arte/fazer cultural tão somente mercadoria, alienada do princípio de que essa produção emerge da intuição profunda -como nos diz Ferreira Gullar-  seja do artista popular ou do erudito, por conta de uma necessidade interior, uma necessidade que busca a expressão em obras e na matéria e nos sons, ou no corpo para corporificar essa emoção, por vezes frágil e fugaz, quando não é um insight de uma manifestação do sublime.
           
Pensamos que as obras culturais dizem respeito a um contexto espaço-temporal, nem que essa obra represente uma antítese a esse contexto. O seu criador as produz para sobreviver ao seu tempo. Um artista, na acepção do termo, deixa marcas e mensagens, mesmo que afirme não ser esta sua pretensão. A prática ( infelizmente comum) de cercear a produção cultural pela invisível censura do privilégio político, vai esmagando a cultura e seu fazer ou seja, a arte em qualquer das suas manifestações.  A realidade é que as leis de incentivo cultural  não estão ao acesso de todos, o que manda por ralo abaixo o projeto de Cidadania Cultural e nos fazem pensar que tal é, na melhor das hipóteses, uma Utopia. Na pior... bem, uma ação política que nada mas é do que “Panis et Circenses” – Pão e Circo. No caso, a cultura vira o circo, no mau sentido.
           
Os bens culturais não dão em árvores, embora o artista contemporâneo possa usar maçãs para sua obra de instalação. Mas todos  os artistas precisam ( ou deveriam) ter maçãs para se alimentar...

Os bens culturais estão imbricados no fazer-se  constante e contínuo. O artista, o criador, de uma maneira ou outra deveria ser protegido, ou deveria ter condições de se proteger contra  a maré extremamente corporativista. É natural  a condição de competição em nossa sociedade capitalista, porém o corporativismo não suporta a manifestação daquele que quer dispor de seu talento e sua expressão fora da ditadura que serve a interesses comerciais e/ou políticos. E por esse e tanto outros que não se curvam ao jogo de interesses, permanecem  à margem dos circuitos culturais oficiais.
           
Nessa marginalização, há um dado positivo que é a liberdade. Embora seja parcial, alguma liberdade é melhor que nenhuma. Porém precisamos ampliar a maneira de veiculação dos bens culturais através de uma valorização intensiva de inserção, ou reinserção, do artista e sua obra na sociedade, fazendo com que o artista seja valorizado pela sua produção e talento, tornando-se alguém que possa a desenvolver sua visão de mundo e da sociedade em que vive e trabalha.

            Leis como a lei Rouanet, ainda não são plenamente acessíveis. Infelizmente, há uma minoria privilegiada ( e nem sempre pelo talento)  que está abocanhando as verbas governamentais, como é o caso, de forma injusta.
            Talvez digam, nosso pensamento, sim, seja utópico. Contudo, a proposta de Cidadania Cultural não foi nossa. Aliás, com ela concordamos plenamente. Desde que seja aplicada realmente e não se preste a palanques e comícios.


10/12/2012

PRÉ JULGAMENTO


Yndiara Macedo

                Ainda outro dia eu comentava sobre o sensacionalismo em cima da morte da menina indiana estuprada na véspera do Ano Novo. Não sou vidente nem nada, mas agora surge o público linchamento da atriz Zezé Polessa.
                Segundo um colunista do jornal carioca “O Dia” a atriz teria humilhado  um motorista de táxi  idoso que errara o endereço do Projac e causara o atraso da atriz. Em decorrência dos insultos, o motorista veio a falecer de infarto (http://blogs.odia.ig.com.br/leodias/2013/01/16/ministerio-publico-vai-indiciar-zeze-polessa-com-base-no-estatuto-do-idoso/. )
                Tomei conhecimento disso através de extensa e intensa veiculação no “Facebook”. Há muitos compartilhamentos acerca dessa notícia ( todos variações do mesmo tema). Em todos, a atriz já é tida como assassina.  O júri popular já julgou e condenou a atriz, com sentença transitada em julgada e sem direito a recurso.
                O que mais me chamou a atenção nessa celeuma - além do sensacionalismo, manipulação da mídia, e veiculação distorcida de fatos como se fosse informação – foi a total falta de senso crítico ( para não falar em senso de justiça ) de um expressivo número de pessoas que se apropriou de uma fofoca  e tornou-a um fato.  O Jornal “O Dia” é conhecido pelo teor sensacionalista e a coluna em questão veicula fofocas sobre astros e estrelas, de preferência Globais. Como era de se esperar, muito infelizmente, a “notícia” sobre a morte de um taxista idoso causada por uma atriz da Globo incendiou as redes sociais ( “Facebook” e “Twitter”, principalmente). Os internautas divulgam e compartilham a fofoca tratando-a como informação, sem se preocuparem em parar para pensar e lembrar que qualquer moeda tem dois lados, que não podemos tomar apenas uma versão como verdadeira.
                Não sou fã de Zezé Polessa, tampouco sua defensora. Ela certamente conta com advogados para representá-la.  Na verdade, eu já nem me assusto com esse tipo de coisa, cada vez mais corriqueira, mas me incomoda ver o quanto o nível de senso crítico está diminuindo hoje em dia. É  preocupante, inclusive, porque a velocidade da comunicação hoje é cada vez mais rápida. Ou seja, tem cada vez mais bobagem, mais nonsense, mais atrocidade, mais boataria, inverdades, distorções e inversões que podem ser divulgadas em “trocentos” gigabytes.  Há coisas boas também, mas se passássemos um filtro para estupidez e futilidade, garanto que ia sobrar bem pouca coisa no “Face” por exemplo.
                 Antes que me crucifiquem ou me pendurem pelos polegares, esfolada viva, sobre um formigueiro, deixo claro que sou usuária de redes sociais, nada tenho contra o progresso e os meios de comunicação. O meu ponto sempre foi e continua sendo a batalha por mais conscientização, mais senso crítico. Menos alienação. Tomemos o “Caso Zezé Polessa”. Segundo notícias em diversos sites na internet, o Ministério Público do Rio de Janeiro abriu uma investigação sobre o caso. Olhem só: trata-se de uma investigação e não de uma sentença. Não sou Juíza nem Promotora de Justiça, como está se sentindo uma bela porcentagem de internautas , colunistas e jornalistas. O meu bom senso, entretanto, me avisa que  1) Até agora só temos a versão do colunista  do dia e boatos de que até colegas da atriz ficaram indignados com seu “ assédio moral” contra o motorista 2) Não  chegou a conhecimento público de que tenha havido qualquer testemunha da agressão da atriz ao idoso, consta apenas que ele passou mal após deixar a atriz no Projac e, no hospital, teria contado que fora humilhado mas não queria registrar ocorrência por medo de perder o emprego. A quem o motorista falou isso, não se sabe, não vi nenhuma declaração de testemunhas a esse respeito e, antes de escrever este texto, eu realizei diversas pesquisas. Se algum leitor encontrou informações de testemunhas do caso, que me desculpem. E me informem. As postagens no “Facebook” também não dão conta de outra declaração que não a que foi publicada na coluna do jornal carioca. Há uma declaração da filha do taxista afirmando que o pai era cardiopata e que naquele dia já não se sentia bem ao sair para trabalhar. A moça teria dito, também, que acha que a agressão verbal da atriz contribuiu para a morte de seu pai.   
                Resumindo: no que diz respeito ao que está na mídia ( redes sociais incluídas) aparentemente não há como avaliar o ocorrido muito menos condenar a atriz. Ninguém parou para pensar na veracidade do que lia. Assumiu-se como vítima o motorista de taxi ( idoso, em condição social menos favorecida do que um “Global”) e como vilã a atriz ( mais favorecida economicamente, estrela de famosa rede de televisão).  Alguém estava dentro do táxi e presenciou a humilhação? Ninguém sabe, ninguém viu. Ainda assim, o linchamento da atriz continua. Volto a dizer que não sou fã de Polessa. Não acompanho sua carreira nem qualquer notícia sobre ela. Minha opinião estritamente pessoal   é que é possível que esse episódio lamentável tenha ocorrido. Como postei na minha página no  “Facebook”,  muitas celebridades ( não apenas televisos ou artistas, mas os “poderosos” em geral)  esquecem que, perdoem a comparação,  no banheiro é tudo igual pra todo mundo e que o corpo vai apodrecer debaixo da terra, salvo se incinerado.  Humildade não ocupa espaço, mas para algumas pessoas ela é grande demais para acomodar no ego.  Minha opinião, contudo, não representa os fatos e eu nem ninguém podemos afirmar nada sem evidências. Só que ninguém costuma parar para pensar nisso. Vamos introjetando, engolindo sem mastigar o que certos meios de comunicação nos empurram. Depois vomitamos esse bolo mal digerido, colaborando com desmedidos sensacionalismos.  Penso que por trás de uma calúnia ou de uma difamação, alguém sempre está buscando uma vantagem que nem sempre é financeira. Pode ser política, emocional, ou, no caso das mídias, ibope, audiência, aumento de notoriedade e, claro, de vendas , o que nos leva de volta ao consumismo voraz e desenfreado de tudo.  Isso me remete ao horrível caso da “Escola Base”, aquela escolinha infantil cujos proprietários e funcionários foram “denunciados” por um programa de televisão por pedofilia e outras atrocidades contra crianças. Na Justiça, foram todos inocentados, pois não havia qualquer veracidade, prova ou fundamento nas acusações. Infelizmente, o veneno da mídia já contaminara uma massaroca de alienados que se dizem cidadãos.  Depredaram a escola, perseguiram e constrangeram os “pedófilos” que, como se provou, eram inocentes. Alguém ainda se lembra disso ou “passou”? Passou para quem não foi preso, publicamente ofendido, apedrejado, caluniado, perdeu emprego e toda uma vida.  (http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/55481/passados+18+anos+professora+da+escola+base+ainda+nao+sabe+quando+vai+receber+indenizacao.shtml )
                Finalizo com uma opinião, que se conselho fosse bom eu estava vendendo:  da próxima vez, antes de espalhar uma notícia, seja nas redes sociais, jornais, televisões, seja contar ao vizinho, verifique a sua procedência e pare para pensar e analisar o que leu, viu ou ouviu. No ensejo: quantas vezes será que fomos realmente humildes esta semana? Será que cumprimentamos e agradecemos com um sorriso o motorista de táxi, de ônibus, o servente no nosso emprego, o varredor de rua, o caixa do supermercado?  Vou confessar: às vezes eu esqueço.

NOTÍCIAS SENSACIONAIS


 Yndiara Macedo

Sensacional: adj. Relativo a sensação, que produz grande sensação; extraordinário, genial, surpreendente: uma novidade sensacional. / Fam. Maravilhoso, espetacular: uma loura sensacional.
Sensacionalismo: s.m. Característica ou particularidade de sensacional. Interesse ou procura pelo sensacional. Utilização ou resultado da busca por assuntos sensacionais cuja repercussão tende a fomentar escândalos, chocar uma sociedade, sem que tais assuntos sejam verdadeiros Filosofia. Fundamento ou teoria cujas ideias são provenientes, exclusivamente, das sensações ou das percepções sensoriais. 
( Definições do Dicionário Aurélio)

            Poucos dias antes do fim de 2012, uma jovem foi brutalmente estuprada e ferida em um ônibus em Nova Déli, Índia. O fato gerou comoção internacional e continua ganhando espaço na mídia.
            Sem dúvida alguma, é uma notícia impactante, horrível e que merece o destaque que lhe tem sido dado. Entretanto, o que tenho observado nos  noticiários em qualquer meio ( televisão, jornal, internet etc)  é que  o tom ora revoltoso, ora informativo, dependendo do veiculador da notícia, está longe da isenção jornalística ou mesmo do caráter de denúncia de que alguns meios tentam se apropriar.  A pura verdade é uma só: o único aspecto explorado pela mídia é o sensacionalismo.  Muito embora encontremos algumas esparsas ( e parcas) informações sobre os fatos e suas consequências, o que se repete “ad nauseam” são os detalhes sórdidos sobre a forma que a jovem indiana foi estuprada e seviciada, destacando-se que foram seis estupradores.
            O que observo é que o interesse da mídia não é chamar atenção ou despertar a consciência acerca desse tipo de monstruosidade, das péssimas condições de segurança me que vivemos, da situação das mulheres na índia e em muitos países ( inclusive o nosso). Os desdobramentos em torno desses temas são efeitos colaterais do sensacionalismo. Efeitos bem vindos, é claro, mas em breve alguma outra notícia sensacional, que pode nem ser hedionda, mas curiosa, científica ou cômica, ocupará o noticiário.
            Há poucos dias, deparei-me com uma brilhante palestra sobre dependência cultural, proferida pelo jornalista e escritor Jorge Cunha Lima (http://www.cpflcultura.com.br/2008/12/24/a-dependencia-cultural/) e gravada para o programa Café Filosófico, da TV Cultura. Dentre outros tópicos relevantes ao tema e muito bem desenvolvidos, Cunha Lima destacou que, segundo sua observação, o produto da televisão brasileira não é mais o programa em si, mas a audiência. Referida palestra foi gravada em 2007. Penso que de lá pra cá pouca coisa mudou, aliás, acentuou-se e não apenas no meio televisivo, mas em qualquer meio. Obviamente, as emissoras de televisão são “campeãs de audiência” nos quesitos morbidez, baixaria e sensacionalismo, disfarçando-os entretenimento ou, pior, de denúncia social.  A denúncia existe, mas, como citei acima, é efeito colateral. Assim que a notícia veiculada começa a arrefecer, logo aparece outro fato sensacional para saciar o apetite mórbido e insensato de uma massa com nenhum ou muito pouco senso crítico. Dessa forma, vai caindo no esquecimento todo o clamor suscitado pela mídia em torno deste ou daquele fato. Quem ainda fala na pobre Isabela Nardoni?  O caso da moça assassinada pelo goleiro Bruno ainda ganha espaço no noticiário porque o indiciado jogava em famoso clube carioca e isso dá audiência. Aliás, como é mesmo o nome da moça assassinada?  Se o assassino fosse um jogador de um clube medíocre no Piauí ou um pedreiro desconhecido do Acre, talvez sequer houvesse clamor público, porque nem haveria divulgação do caso. Quantas mulheres e crianças são estupradas, machucadas, mortas todos os dias, em diversos pontos do planeta?  O caso Nardoni, por exemplo, foi chocante e tenebroso, porém, não se trata de caso isolado. Quem trabalha nas Varas Criminais de qualquer cidade brasileira já deve ter se defrontado com casos mais hediondos e não divulgados, pois não despertariam o necessário “auê” que gera a audiência, que atrai leitores, que divulga e destaca os meios de comunicação. Isabela Nardoni, por exemplo, era de família abastada, pais com nível superior, avô advogado.  O empresário japonês assassinado e retalhado pela mulher era pessoa de posição financeira relevante e por isso com destaque social. Mas não nos enganemos, tem coisa muito pior ocorrendo por aí, anonimamente, apenas porque não interessa à mídia divulgar.
            É óbvio que não é possível noticiar e saber de absolutamente todo e cada movimento neste planeta. O que me desperta atenção e que desejo ressaltar é a necessidade de não tomarmos por denúncia a sede por audiência e a criação de uma irreflexiva cultura da violência. A mídia, qualquer que seja, não está prestando um serviço social, muito menos denunciando desiguladades, atrocidades, conspirações. O culto e a cultura da violência não leva á reflexão do porque essas coisas horríveis acontecem. Não encontrei nenhum debate sobre o que levou seis indivíduos a agirem tão brutalmente contra um ser humano. Não que haja desculpas para a monstruosidade, mas ninguém reflete sobre de onde ela surge, como se alimenta, porque aumenta. Todo mundo quer ver o enforcamento dos assassinos, ou seja, mais violência. Ninguém se pergunta o porquê de nada e vai crescendo um mercado da violência extremamente expressivo, sempre disfarçado de notícia ou denunciação. A mídia presta serviço a si mesma e é com isso que precisamos nos cuidar. O antídoto é simples: menos BBBs, Fazendas, compartilhamento de inutilidades no Facebook, menos pancadão, baixaria, dancinhas de bundas rebolantes, palavrões, consumismo desenfreado. Mais senso crítico, mais leitura, e não apenas juntar palavrinhas, mas desvendar a escrita. E por leitura entendamos também a compreensão da mensagem, seja ela verbal ou não verbal. Precisamos com urgência descobrir as entrelinhas, ler o que não está escrito, ouvir o que não foi dito, ver o que não está a olho nu, como queria Paul Klee.
            Quem sabe com mais senso crítico, com menos estupidez e alienação (que é morte cerebral voluntária), diminuam-se os casos de violência, estupros, assaltos, miséria, corrupção. Quem sabe vejamos menos casos como o da pobre jovem indiana e possamos ver menos programas que pingam sangue e mais entrevistas como a do Cunha Lima, na Cultura. Afinal, o senso crítico é  ferramenta essencial da cidadania. Sem cidadania, não há civilização que se sustente.
05/01/2013

DEFEITO DE FÁBRICA


 Yndiara Macedo
Foi esta a imagem cuja postagem  deu origem a esta crônica


O “Facebook” anda me dando linha. Ou dando gás. No meio de tanto besteirol, acabo encontrando pérolas que dão o que pensar. Uma caríssima amiga, Dani Facholli, compartilhou um engraçado cartum: diversas mulheres, todas idênticas, bonitas, jovens, o cabelo irrepreensivelmente penteado ( e necessariamente liso)  coloridas em tons róseos, com um enorme código de barras na testa. Atrever-me-ia a dizer que são loiras, não pela piada preconceituosa, mas porque ainda hoje o padrão de princesinha é o nórdico europeu.  Cada uma das multigêmeas segurava um acessório de maquiagem. No meio delas, bem à frente, em preto e branco, há uma jovem trajada casualmente, os cabelos escuros em desalinho. Ela não é feia, mas obviamente se destaca pelo visual despojado, sem compromisso. Ela lê um livro. Na testa, em vez de código de barras, há um papel, afixado com fita adesiva onde lê-se: “defeito de fábrica”. Achei fenomenal! Além de bem humorado, adorei a mensagem. Postei meu comentário para a Dani e fui ler as outras postagens. Para meu espanto, algumas pessoas criticaram o cartum.  De forma geral, as (os) reclamantes diziam que aquilo era preconceito contra a beleza e vaidade femininas. Que nem toda mulher bonita é burra e nem toda feia é inteligente. Concordo integralmente com o postulado, mas não em relação ao cartum. Eu fiz uma leitura totalmente diferente: no meu olhar, o enfoque não reside na questão da beleza X inteligência.  Interpretei a mensagem como uma crítica aos “modismos”, ao escravismo dos padrões do que é belo, e, o principal, crítica à futilidade X consistência. Este, para mim, é o ponto central. E parabéns ao cartunista, infelizmente não há assinatura no desenho para eu poder creditar neste texto.
Não há mal algum em ser vaidosa(o). Acho que é uma virtude se cuidar. Pessoalmente, sou extremamente vaidosa.  Adoro perfumes, tenho uma bela coleção de paletas e pincéis para maquiagem, vivo lutando contra o peso, tentando buscar a boa forma. Invejo Angelina Jolie, Scarlet Johansson, Kate Beckinsale, Luiza Brunet (para mim, eterna musa).  Não vivemos só de pensar. O nosso cérebro habita acima de um corpo. Mas aí é que está: o corpinho tem que obedecer ao cérebro e não à coletividade, à moda, ao consumismo.  Embora eu admire e inveje a boa forma ( e os modelitos Givenchy) da Angelina, Scarlett ou da Luíza, eu não quero me tornar nenhuma delas, mesmo porque isso é impossível. Somos únicos. Tampouco vou contrair uma dívida no banco ou assaltar uma loja na 5th Avenue  ( aqui em São Paulo, talvez a Daslu, mas ... nhé... 5h Avenue é melhor.) para ter marcas famosas. Francamente, além de ser fútil e potencialmente perigoso à minha vida, eu nem teria onde usar um modelo Yves Saint Laurent com uma bolsa Gucci e sapatos Prada. A primeira dificuldade seria em *caber*  em um vestido que é feito para mulheres com 1m70 e 50 quilos. A segunda seria ter coragem de sair à rua com peças tão valiosas para acabar assaltada. Ou passar ridículo. Alguém se imagina indo para o supermercado num lamê da Dior, de ônibus?
Todo mundo sonha com coisas boas, coisas chiques. Imagino que uma criança da Somália deve achar que comer todo dia é o “crème de la crème”, por exemplo. O pobre do sem teto que dorme na frente do Fórum aqui da cidade deve achar um luxo dormir numa cama após um banho de – veja só – água quente.  Exageros à parte, todos temos sonhos de consumo. O meu é uma viagem à Europa, de onde eu posso trazer um kit completo da Lancôme, à preço justo.  O do meu marido deve ser uma coleção de quadros do Miró; telas feitas à mão, sob encomenda, pinceis e tintas da melhor qualidade. Tem gente que sonha com uma Ferrari e por aí vai. Isso não é pecado e até faz bem. O mal é quando esses sonhos se tornam o alvo e o motor de uma obsessão, de uma compulsão que nada detém, nem a ética. Aí surgem os corruptos, que já esqueceram o que é ética. Moral? O que é isso? Quando começamos a substituir o essencial pelo conspícuo, aí a coisa fede, ainda que seja a perfume francês.  É aí que surgem as dívidas ou, no pior caso, a ética e a moral saltam pela janela e começamos a fazer qualquer coisa pelo ter e pelo parecer, em vez de simplesmente ser.
                O cartum mencionado me evoca isso, mas à frente há a questão da padronização ( que não deixa de ser ferramenta do consumismo) e da futilidade, em especial a feminina. A meu ver, o que o desenho ataca não é a vaidade, mas o seu exagero e o deslocamento que causa uma mulher que não siga o padrão a ponto de ser considerada um defeito de fábrica. Não, o mundo não mudou.  As sufragistas e feministas certamente conseguiram nos tirar da Idade de Pedra. Já podemos votar, trabalhar, até ganhar mais que os homens ( dependendo do cargo e do empregador). O problema é que o pensamento social ainda me parece Neandertal. Sob a máscara da “liberdade sexual” subjaz uma ferida escondida. Tem muita, muita moderninha por aí que se gaba de ter beijado 16 por noite e de poder fazer sexo com qualquer um e a qualquer hora, mas que inveja a amiga bem casada, que pode até não fazer sexo todo dia, mas dorme abraçada com o seu amado e, quando vão pra cama, fazem amor junto com sexo. As amigas mal casadas são a desculpa perfeita para a moderna – será que eu devia dizer mal comida? Não sei. –  anunciar aos quatro ventos o quanto é feliz por estar livre, leve e solta. Livre? Onde, se quando ela vai pra balada bate a preocupação com o vestido, o sapato, a maquiagem, o perfume, o penteado, a cor da unha. Leve? Como, se o peso da concorrência que ela vai encontrar a deixa à beira de um ataque de nervos que a leva a explodir o cartão de crédito no salão, na massagista, no pilates, no cirurgião plástico? Solta? De que forma, se a prisão a um padrão de beleza cada vez mais rigoroso a leva a loucuras como serrar costelas para diminuir a cintura, injetar silicone para turbinar os seios ou fazer cirurgia para retirar o que o padrão diz que é excesso.  A última invenção da “moda” é extrair o dedo mindinho do pé para diminuir o tamanho e tornar o pé mais “harmonioso”. Eu acho que essa última deve ser manobra de alguma marca de calçados.
                Enquanto isso, tem aquelas que vem com defeito de fábrica. Que acham a Angelina Jolie linda, mas não caçam o Brad Pitt na balada e preferem investir na tese de mestrado em vez da nova coleção da Chanel. E óbvio que isso é preocupante e visto como um defeito. Essas mulheres não se veem como acessórios masculinos, não se sentem na obrigação de trocar de cor de cabelo para parecer com a ninfeta “globete” do momento, questionam quando o cara enrola, quando mente, reclamam se o futebol, a cerveja e a farra deixam apenas 10% de tempo pra ela. No mínimo, ela quer o meio a meio. E quer o direito de sair com as suas amigas pra se divertir enquanto ele enche a cara com os amigos. Ela adora os peitorais e o “tanquinho”  do Thor e do Wolverine da mesma forma que ele fica secando, sem discrição, a bunda das gostosas que anunciam sua marca de cerveja favorita.  Ela não exige casamento e filhos, mas quer compromisso, companheirismo. Ela não joga o cabelo pro lado e vai retocar o batom quando o namorado começa a falar sobre a crise econômica ou sobre a última publicação da Cia das Letras. Isso se ela der sorte de encontrar um homem antenado. Se for um resquício de Conan- o-Bárbaro o cara periga levar uma cortada ou gelada federal ou ficar de pé, horas, tentando decifrar a última frase que ela disse, porque desconhece o que é sarcasmo.  
Em suma: esse tipo perigoso de mulher pensante dá trabalho. Não dá pra manipular, pra cornear, pra enrolar. Não dá pra dizer “Eu fui pra cama com ela, mas é você que eu amo”. Ainda que a dama em questão (elas são todas damas. Não conheço uma mulher verdadeiramente inteligente que goste de descer barraco) esteja seriamente apaixonada e comprometida, chega uma hora em que o afrodisíaco da paixão começa a perder o efeito e Miss Defeito põe saia justa no gajo em questão: “Por que a gente nunca sai sexta nem sábado à noite?”  “Porque o jogo do timão é mais importante que o meu aniversário?”  “Como assim, lavar suas cuecas? Você não meu filho. Nem que fosse.”  “Ué, você não ia pra cervejada com o pessoal da facul? Eu estou com as meninas aqui na praia.” “ Você não disse que hoje ia visitar a sua tia doente? Como é que a gente se encontra aqui na festinha do Tito?” “Desculpa, querido, mas eu não vou pagar a conta sozinha, nem pôr gasolina no seu carro.”  O cara, que a essa altura está com os neurônios derretendo ( Eles não tem mais que a gente? Uns a menos não vão fazer diferença), não compreende porque aquela mulher não é igual as outras, porque faz tanta pergunta, porque insiste em conversar com ele, em fazer faculdade, discutir política, a relação do dois. Ela faz piadas que ele e seus amigos do bar não entendem. Só pode ser defeito de fábrica. Ele cogita ligar para o Procon, mas desiste e termina o relacionamento ou some que nem o desenho do Leão da Montanha. Saída estratégica pela direita!
Eu vim com defeito de fábrica. Demorou para eu entender que isso é bom, pois tudo que o ser humano tenta é viver em grupo e ser aceito por ele. Hoje agradeço a Deus que me mandou da fábrica com esse “vício irreparável”, pois inteligência não tem reparo. Não é possível ficar burro. Ainda bem que eu não tenho que lavar, no tanque, cueca nem macacão sujo de graxa de marido que está assistindo ao Faustão, estirado no sofá, criticando minha celulite em comparação com as dançarinas, ostentando uma indecente barriga de chope e macarrão com molho que ele derramou pelo chão que ia sobrar pra eu limpar.  Também agradeço por não ser a amante eterna do executivo que jura que vai largar a mulher, mas precisa de um tempo, bem como não ser a esposa desse mesmo homem, fingindo não ver que ele chega cada vez mais tarde durante a semana, não sentir o perfume diferente nas camisas de seda, afinal, ele paga as contas do meu cartão de crédito, como eu vou viver sem a grana dele?
Por sorte, também existem homens com defeito de fábrica.  O filósofo Roberto Carlos acaba de decantá-lo em “ Esse cara sou eu”. É o homem que liga no dia seguinte, que se preocupa se você some, nem que seja por um diazinho só. O homem que lhe pinta quadros e lhe faz poesias. Se não é artista, lhe manda poesias que emprestou do Drummond, do Quintana, Neruda. Dá flores e presentes fora de hora, sabe o que você gosta, respeita sua opinião, ouve o que você fala, interage, não tem ciúme das suas amigas, como você não tem dos amigos dele, apoia suas decisões, alerta quando você vai fazer bobagem, estimula seus projetos, vibra com o seu sucesso, para o total assombro dos machos bem fabricados, que não compreendem de que planeta veio tal otário.  Sim, também há homens com defeito de fábrica. Estão por aí. Tenham fé. Eu casei com um deles.
Yndiara Macedo – 17/01/2013

A MORTE E O FUNCIONALISMO PÚBLICO



Yndiara  Macedo

(1º Colocado no Concurso J.I. de Literatura - 2008  - Finalista e Vencedor do MAPA CULTURAL PAULISTA - 2010 ) 

          O Zé morreu numa quarta-feira. Caiu morto, em cima de uma pilha de papéis, na repartição pública em que trabalhava, fazia mais de 25 anos.
De início, ninguém reparou. Todos resmungavam contra a perda salarial, as péssimas condições de trabalho, a corrupção na política. Todo mundo estava concentrado nos carimbos, na burocracia às suas mesas, com medo da possível aprovação da perda  de estabilidade no funcionalismo público. Ninguém notou o Zé caído, sem respirar. Só uma hora depois é que o chefe da seção percebeu o funcionário sobre a pilha de documentos. Devido á queda,  muitas se espalharam pelo chão.
O mau humor do chefe já era notório. Naquele dia estava pior porque seu time perdera o campeonato. Da sua mesa, no fundo da sala, ele resmungou, bem alto, contra o “relaxo” e  a “vagabundagem” de certos funcionários.
O colega que sentava ao lado do Zé, com medo do mau humor do chefe, mandou o morto levantar, antes que sobrasse para todo mundo. Aquilo lá era hora de dormir? As duas funcionárias que ocupavam as mesas de trás começaram a cochichar sobre a cara de pau do “folgado”, com olhares  e piadinhas maldosas.
A maledicência se alastrou como uma doença, contagiando a sala, e o Zé, funcionário exemplar há quase 30 anos, que nunca entrara atrasado, virou o vagabundo que cochilava em serviço.
Irritado, o chefe levantou-se e foi até o Zé, vociferando ameaças de sindicância, sacudindo- o e ordenando-lhe que se levantasse. O morto rolou para o chão, os olhos esbugalhados, a boca entreaberta.
Houve um instante de mudez na repartição. Quem rompeu o silêncio foi o estagiário que perguntou o que iam fazer com o corpo. O chefe fitou o rapaz com ódio. E ele lá ia saber o que fazer? Aquilo não constava nas normas do serviço.
O corpo do Zé foi arrastado e trancado no almoxarifado. O chefe incumbiu um funcionário de ligar para os bombeiros e avisar  a viúva, depois voltou a trabalhar porque o serviço não pode parar. O tal funcionário incumbiu outro colega. O outro colega incumbiu outro, que incumbiu outro que finalmente passou a tarefa para o estagiário. Quando o rapaz ia pegar o telefone, uma das funcionárias gritou-lhe exasperada que ele tinha que passar um fax urgente ou perderia o emprego.
O defunto foi esquecido no almoxarifado. Só lembraram no dia seguinte, quando o corpo começou a feder. Ninguém na repartição foi punido. Culparam o estagiário e o rapaz, que era terceirizado, foi demitido.
O Zé, funcionário público morto em serviço, foi sepultado na sexta-feira e o alto escalão avisou que o dia não seria abonado.

Só o estagiário foi ao enterro.

FALHA NO SISTEMA


Yndiara Macedo 
( 2º Colocado no Consurso JI de Literatura - 2012 )
                  Foi no sétimo dia útil que tudo começou. Aparecida aguardava a vez na fila do banco. Era procuradora da mãe doente. Doença rara que escolhera a velhice para se manifestar. Metade da aposentadoria ficava na farmácia. Aparecida introduziu o cartão no caixa eletrônico e em vez do benefício, recebeu a novidade: a conta estava zerada. Aparecida repetiu o procedimento e a tela mostrou o mesmo saldo: 0,00.
                A mulher entrou no banco, foi levada ao “gerente pessoal”. Aguardou ansiosa, só para descobrir que se tratava de um funcionário que resolvia problemas grandes ganhando um salário pequeno. O homem consultou extratos, deu telefonemas. “É falha do sistema, senhora, mas não do nosso. O problema é na firma em que sua mãe trabalhava.”
                 A firma ficava longe. Aparecida tomou três ônibus. Ao chegar, procurou pelo R.H., mas fechara às dezesseis horas. No dia seguinte, Aparecida voltou, cedinho. Madrugou inutilmente, pois o setor abria às dez. Demorou a ser atendida. Explicou o ocorrido: “Não depositaram a aposentadoria da minha mãe, o banco disse que é falha no sistema.” O funcionário do R.H. foi categórico: “Certamente foi falha do sistema, mas não do nosso. A senhora tem que procurar o Financeiro.” “Em que andar fica?” “No quinto, mas hoje ele só abre de manhã e já é meio dia. Só na segunda feira”.
            O fim de semana foi opressivo. Aparecida mentia à mãe para não piorar sua debilitada saúde. A medicação dela chegava ao fim e não havia remédio contra a burocracia. Na segunda, Aparecida foi ao Setor Financeiro onde lhe disseram: “Se é falha do sistema, foi na Tesouraria.”. Aparecida implorou. “Pelo amor de Deus, me digam que eles atendem hoje!” Atenderam. E foram taxativos. “O sistema da Previdência é um caos. O processo emperrou lá.”
            Na Previdência, negaram a falha no sistema: “Os documentos já foram enviados à firma. Volte lá.” Aparecida voltou à firma e lhe avisaram: “Já recebemos a documentação, mas, entenda, o prazo para o trâmite é de cinco dias úteis.” “Minha mãe está doente! Por favor, não há outro meio?” Ela suplicou. “Nós fazemos tudo de acordo com o sistema, senhora. Procure um posto de saúde”.
                Aparecida foi ao posto de saúde de seu bairro. Um atendente consultou dois computadores e seis funcionários para informar: “Nós até temos o remédio, mas só chega em dez dias.” “Rapaz, minha mãe vai morrer. Ela está sem dinheiro e sem remédio! O que posso fazer?!” “É o sistema, senhora. Procure um advogado.”
                A mulher entrou no primeiro escritório de advocacia que encontrou. Estava quase tão macilenta quanto à mãe doente e que tomava aspirina, sem saber que a medicação acabara. O advogado informou: “Cabe uma liminar. Leva uns cinco dias.” Aparecida voltou para casa, anestesiada. O sistema parecia se mover a cada cinco ou dez dias, nada podia fazer.
                No sétimo dia após a última solicitação de Aparecida, a aposentadoria foi depositada, sem correção monetária. Do banco, Aparecida foi direto à funerária, pagar o enterro da mãe, que falecera dias antes. Na certidão de óbito, constou como causa mortis: “falha múltipla no sistema”.

A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR


A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR
            A Cleo entra cantando no cartório. Cumprimenta-nos, sorrindo. Ela é a funcionária da limpeza. Todo dia passa à mesma hora, recolhendo nossos cestos lotados do lixo do dia: certidões incorretas, erros de digitação, documentos caducados. Papéis inúteis. A Cleo vai de mesa em mesa, esvaziando o lixo em grandes sacos pretos. Vai brincando com todos, faz piada com os cestos mais cheios: “errou muito hoje, hein?” nos lembra do meio ambiente: “Assim, ‘cês’ tão matando árvore! Quanto papel!”. Vai embora cantarolando outra canção. Todo dia é o mesmo bom humor. 
Enquanto isso, em nossas mesas, resmungamos contra a falta de sorte: o aumento que não veio, a nota baixa dos filhos na escola, o cheque especial estourado. Reclamações até jutas, ninguém está resmungando por nada, mas a Leo me faz lembrar um episódio ocorrido em Caraguatatuba, no carnaval de 2003.
         Era uma daquelas situações fundo do poço, quando a gente pensa que pra afundar mais, só cavando. Eu olhava o mar e o mar me olhava de volta, imperturbável.
            Uma mulher passou por mim. Uma mendiga, suja, usando camiseta de duas eleições passadas, o cabelo duro de piolho sob um boné ensebado. Arrastava uma vassoura velha e uma sacola plástica onde recolhia latinhas vazias de alumínio.
  Ela parou poucos metros à minha frente, apanhou uma latinha, lavou-a, encheu-a com água do mar, para depois despejá-la sobre si, refrescando-se.  A mulher inspirou profundamente, fitando o horizonte. Então bateu as mãos no peito e exclamou; “Ê, vida boa!” E se foi, caminhando sem pressa, arrastando a vassoura e a sacola à beira d’água.
  Esse é o tipo de cena que não deixa ninguém em paz, embora devesse. Aquela maltrapilha, que recolhia latas para poder comer, fitava um mar diferente do meu. Minhas ondas eram indiferentes. As dela, sorriam.
               Quando vejo a Cleo cantando e rindo enquanto recolhe o lixo do cartório, lembro da catadora de latinhas, tão menos mendiga que eu, que nós, que muitos que não recordam de Jesus  ensinando a dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
   A cada dia, o bom humor da Cleo e o episódio da mendiga me lembram o quanto estamos esquecidos de dar a Deus o que é de Deus. A sermos mais reconhecidos pela benção da saúde. Pelo trabalho que porá o pão à mesa. Ou simplesmente pela benção da vida, porque a residência da vida é a mesma moradia da esperança .
Por isso, a Cleo sorri, esperançosa e reconhecida. Por isso, a maltrapilha nos supera  e ambas nos ultrapassam, menos preocupadas com o que é de César e mais perto do que é de Deus.

Yndiara Macedo 06/01/2011

ATENDENDO A PEDIDOS

Estou postando aqui alguns contos e crônicas publicados em jornais e alguns premiados em concursos.