Por Yndiara Macedo
Era alta madrugada quando André
fechou a porta de casa, cuidadoso para não romper o silêncio. Estava a caminho
do banheiro quando ouviu a porta do quarto da mãe se abrir. Engoliu em seco,
esperou. Talvez se tratasse só um golpe de ar inoportuno, para importunar-lhe
os nervos. André prendeu a respiração, aguardando o momento para se mover,
entrar no banheiro. Sua porção racional mostrava-lhe o ridículo da situação.
Ele era um adulto de 30 anos que
trabalhava, pagava metade do aluguel e outras despesas da casa. Pagava muitas
contas para ter que prestar contas dos seus atos. Ele abriu devagar a porta do banheiro. Ao som
mínimo do “click” da maçaneta, ecoou a voz da mãe, amargurada.
- A essa hora,
André Luiz?
A boca do rapaz
abriu e fechou, mas a voz não saiu. Dizer o quê? Era tarde mesmo.
- Onde você estava
até agora? E esse cheiro? Não é maconha, é?
- Não, mãe. É
meu perfume... – respondeu André, num fio de voz. A mãe não ouviu, como sempre,
ou entendeu o que quis. Como sempre.
- Só faltava
essa! Meu único filho, maconheiro. Meu Deus, que vergonha teria seu pai. Em que
companhias você tem andado?
André desistiu de se defender antes mesmo de tentar. Seria um esforço
vão. Nascera condenado. Seu Júri era a família, desde o primeiro ancestral até
o último bebê que nascera, de uma prima distante. A promotoria era o mundo de gente normal,
ordeira, temente a Deus. “ Bobagem” lhe dizia a consciência “ O mundo mudou. O
que é ser normal?”.
Mas a consciência
de André não conseguia ser seu Juiz. A menção ao pai lhe provocou o conhecido
arrepio na espinha, que antecedia as memoráveis surras paternas, que ele levava
de vez em sempre. O velho morrera havia sete anos, bem a tempo de André
desistir da faculdade de Engenharia. Por dias ouvira a ladainha amargurada da
mãe que o acusava de apunhalar o pai pelas costas. Logo ele, um homem tão bom,
que queria ver o filho doutor, formado! Um homem tão bom!
André
despiu-se e foi para debaixo do chuveiro.
Um homem tão bom, pensava André enquanto deslizava o sabão pelo corpo
cheio de marcas. Mas nenhuma era tão feia quanto as que havia na sua lembrança.
A mais horrenda era do dia em que o pai o pegara na casa da vizinha, brincando
de casinha. Ele tinha uma boneca nos braços, embalava-a com carinho. O pai o arrastara
para casa pelas orelhas, trancou-se com ele no banheiro. Primeiro levou uma
surra de cinta e socos até entortar.
- Onde já se viu
de boneca na mão! Isso lá é coisa de homem?!
- A gente tava
brincando de casinha... – murmurava o menino entre soluços.
- Homem não
brinca dessas coisas! Casinha é coisa de mulherzinha!
- Mas eu era o
pai! – chorava a criança, Quanto mais lágrimas, mais apanhava.
- Que pai que
nada! Já me viu de bonequinha por aí?! E engole o choro. Aprende a apanhar que
nem macho!
O pai fizera ele se despir,
agarrou-o pelos testículos e pelo pênis.
- Está vendo
isso aqui? Olha, moleque!
André baixou os
olhos cheios de dor para a os ainda pequenos órgãos. Tinha onze anos.
- Se eu lhe ver
de bonequinha na mão, brincando com menina ou chorando que nem mariquinha eu
vou cortar isso tudo fora e dar pros cachorros.
– sibilou o pai. Tinha o hálito carregado de cigarro, que fumava um
atrás do outro e que o matou, aos 59 anos, vítima de câncer generalizado.
- Um homem tão
bom. – lamuriava-se a mãe, do corredor. – Não merecia isso.
André enfiou a cabeça debaixo do
chuveiro até que só ouvisse o barulho da água martelando sobre a cabeça. Desde
os onze anos aprendera a apenas ouvir e calar, mesmo a dor. Ele não entendia
porque era diferente, porque na escola gostava mais da companhia das meninas e
ao ver novelas queria namorar os galãs e não as mocinhas. Não era de propósito,
ele não escolhia ser assim, não escolhia ser espancado pelo pai nem escarnecido
pelos outros coleguinhas.
- Mulherzinha! Mulherzinha!
Mulherzinha! – gritavam os garotos na escola.
- Não sou não! –
ele gritava de volta. E não era mesmo. André não era mulher, nem queria ser.
Mas queria namorar o Indiana Jones e não a Madona. Não sabia por que e não
tinha a quem perguntar. Cresceu isolado. Na adolescência, ia escondido na casa
das amigas, dizia à mãe que ia jogar futebol ou fazer trabalho de grupo. Aos 18
anos seu pai lhe deu dinheiro para “ ir pegar uma dona”. O rapaz não entendeu.
- Uma dona!
Mulher da vida! Puta! Prostituta! – rosnou o pai , tossindo com a fumaça do
cigarro. André pegou o dinheiro e saiu
porta a fora, antes que apanhasse, sem saber para onde ir. Ele obviamente sabia o que era prostituição,
mas não onde encontrar. A simples ideia de pagar por sexo o enojava. Será que o pai
dormia com putas antes de dormir com sua mãe? Vomitou na calçada. Mas aquele era o conselho de um homem bom.
Seu pai. O modelo a seguir até o bordel mais próximo e deitar com uma
desconhecida.
O
rapaz tomou um ônibus, foi até o ponto final. Esperou o tempo passar e pegou o
último ônibus de volta. Foi a única vez que não apanhou ou levou sermão ao
chegar tarde em casa. Os pais estavam recolhidos, ele se trancou no quarto.
Escondeu bem o dinheiro dado pelo pai. Depois pensaria no que fazer com aquilo.
Esmola na igreja, um presente pra mãe, qualquer coisa.
Com o passar do tempo, André
falava cada vez menos com o pai e só o necessário. Passou no vestibular para Engenharia para
escapar da surra certa se falhasse. A
mãe era uma figura apática, quase ausente da sua vida. Se o pai não era
seu modelo, ela tampouco. Ele vivia para
dentro, na solidão e no silêncio. Sempre
o silêncio.
Quando o pai estava nas últimas,
foi vê-lo no hospital. Pouco restava de força no corpo magro esticado no leito.
Com os pulmões, esôfago e faringe tomados pelo câncer, o velho já quase não
podia falar, mas os olhos continuavam agressores. Foi com eles que fitou André,
que estava sentado em uma cadeira, no canto mais distante possível. A mãe tinha
ido ligar para uma das suas irmãs, aproveitando o horário de visitas. André olhava para o relógio no pulso e para a
porta, rezando para a mãe voltar logo e ele poder ir embora. Falar o quê? Das
insuportáveis aulas de cálculo, das tediosas aulas de mecânica, da solidão nos
intervalos ou na hora do almoço porque ele não era do time da cerveja nem do
futebol de domingo, ou da caça à mulherada?
Nada tinha a dizer ao pai que não havia lhe deixado nem um resto, uma
migalha de amor.
- Eu já vou
indo... – André se levantou. Mais cinco minutos e encerravam-se as visitas –
Mamãe já vem.
Os olhos agressores do pai
fitaram-no. A boca trancada numa expressão dura. O rapaz abriu a porta e ouviu
a voz roufenha do pai chamá-lo.
- André...
Ele se voltou. O pai tossia e
respirava com dificuldade, juntando esforços para falar:
- ... eu sei o
que você é.
Essa foi a última frase que ele
ouviu do pai. Cuspidas com algo pior que ódio. Um desprezo arrancado do fundo
da alma tão tumorosa quanto o corpo.
André deixou a
faculdade, arranjou um bom emprego graças às suas habilidades em informática,
área da qual ele realmente gostava. Conheceu
outras pessoas, descobriu que havia outros iguais a ele: advogados,
professores, arquitetos, psicólogos, vendedores, caixas de loja. Gente. Aprendeu onde encontrar um pouco de
atenção e de carinho, mas sempre discreto, sempre em silêncio. Amar se aprende
amando e ele não tivera esse tipo de educação. Na televisão, especialistas falavam em
opção x orientação. André não optara. Ninguém opta por uma vida que é imposta à
margem. Tampouco fora orientado.
Simplesmente era... o quê? André engolia
os próprios pensamentos, recusando-se a usar quer o rótulo quer o termo
politicamente correto. “Sou Humano”
dizia-se, mas como não conseguia crer nisso, diante do olhar reprovador e
severo da mãe que lhe cobrava esposa e filhos. André temia o olhar dos outros,
olhava para dentro de si e via um abismo. Evitava espelhos, que o incomodavam.
André fechou a torneira do
chuveiro. Finalmente, a mãe cansara e fora dormir. Ele enxugou-se e foi para o
quarto. Havia uma mensagem no celular.
“ Me liga. Tem churrasco amanhã. Elisa”
Elisa era uma colega de trabalho.
Loira, muito bonita, disputada pela homarada do escritório e do resto do mundo.
Aproximara-se de André porque fora o único que não lhe passara uma cantada nos
primeiros minutos de conversa. Tornaram-se amigos. André era bom ouvinte e se
tornou confidente da moça. Diferente dele, Elisa não sofrera abusos na
infância, nunca tivera problemas na escola ou na família. A não ser a incômoda
mania da mãe e das tias de quererem bancar o cupido. Elisa contou a André como
se horrorizava ante a ideia de acabar como a irmã, cujo marido a traía desde o
tempo de namoro. Ou como as primas com os maridos grosseiros, entediados, mais
interessados em futebol e cerveja do que no casamento ou nos filhos.
- Nem todo homem
é assim. – Argumentou André, lembrando
do pai mas se sentindo na obrigação de não desiludir uma mulher tão doce e tão
bonita. – Tem gente boa no mundo.
- Eu sei. –
abriu um lindo sorriso – Não tenho raiva dos homens. O problema é o seguinte...
entre o Indiana Jones e a Madona, eu prefiro a Madona.
André demorou para encontrar a
voz. Como assim? Ela era tão linda, popular.
- Por quê? – ele
indagou. – Você tem uma vida tão tranquila...
- Minha vida é
tranquila porque ninguém sabe dela.
A partir dali, se tornaram quase
inseparáveis. André a levava em casa de
vez em quando, e juntos enfrentavam as longas ladainhas da mãe dele, que queria
netos, que sofria muito, que sentia falta do marido.
- Um homem tão
bom...
Por sua vez, André não se
importava de acompanhar Elisa nas festinhas da família dela e admirar-se de
como o mundo não reconhece impostores, quando não quer. Por isso, no dia seguinte ele iria envergar sua melhor
fantasia de macho e acompanhar Elisa ao churrasco, sorrir diante das piadinhas
sobre quando eles iam parar com o papo de amiguinhos e “se assumir”.
Ambos amigos, aliados.
Reféns do mesmo silêncio.
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