quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Um Apólogo


( O que consola as pobres tolas agulhas é que na fogueira de vaidades vão se consumindo, pouco a pouco, certas linhas ordinárias...  Y. Macedo )
Machado de Assis

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora?  A senhora não é alfinete, é agulha.  Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa!  Porque coso.  Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você?  Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser.  Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco?  Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas?  Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: 
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. 
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

Vencer com autenticidade

Por Yndiara Macedo

Sou uma das vencedoras do prêmio JI ( Jornal de Itatiba) de Literatura deste ano. Estou imensamente feliz. Não só porque ganhei, mas porque é muito bom ver um trabalho reconhecido e divulgado.
 Destaco dois elogios que faço ao prêmio JI :  a transparência e a  credibilidade na escolha.  Pode até ser que o Juri tenha certa pendência para este ou aquele estilo literário ou para este ou aquele tema, mas isso não é um problema, pois tenho certeza de que não há cartas marcadas. Já concorri e ganhei trez vezes e já houve anos em que meus textos não foram sequer selecionados.  Não porque sejam ruins, mas porque para o gosto e critérios do Juri, havia textos melhores.
Vencer um concurso, publicar um livro, vender mais ou menos, sair ou não no jornal, não significa grande coisa. Obvio que se trata de conquistas, mas o valor delas depende grandemente de como se chega lá. Quando se chega a algum lugar com autenticidade e ética, é o momento de estourar as champanhas e soltar os rojões . É o coroamento de um processo, de uma jornada de trabalho.
Há pessoas, no entanto, que na ânsia de cruzar a linha de chegada não se importam de ir jogando cascas de banana pelo caminho para despistar a concorrência. Tem gente que só chega em primeiro quando os outros tropeçam. Isso é triste. E infelizmente vemos muito isso hoje em dia, ainda mais na política, em época de eleições.
Na ânsia de engordarem os bolsos, certos "porcolíticos" não se importam de jogarem sujo e usarem pessoas como escada. Há as escadas de boa fé, que são os ingênuos que acreditam. Há as escadas desesperadas, que são os que estão necessitando de algo, às vezes de atenção, emprego, companheirismo, às vezes é alguém que espera uma parceria. E há as escadas corruptas, que são aqueles que se fazem de degrau na expectativa de subirem juntos. Talvez para esses seja muito bem feito quando descobrem que escada não sobe degrau, ela existe para fazer alguém subir.
Nada, no entanto, desculpa ou suaviza a falta de ética. E uma ética simples, pura e simplesmente humana, que é respeitar o próximo.
Não falo aqui só dos políticos, senhores candidatos, porque tenho esperança que exista algum que tenha bons valores.  Falo dos porcolíticos que se disfarçam de humanos, de cidadãos da polis, com seus discursos fascistas fantasiados de democráticos. É o sujeito que nega ser racista mas proíbe a filha de namorar negro e ensina ao filho que negra é pra fornicar, pra "comer". É o sacerdote de qualquer religião que pensa mais no tilintar dos bolsos do que na alma dos fiéis. É a perua que faz "caridade" pra sair na coluna social. É o "amigo" que só aparece na hora de pedir favor ou de fazer festa, mas que some quando precisa emprestar o ombro ou o ouvido. É o homófobo que não sai do armário e diz ser moderno mas se for cantado por um gay, lhe dá um murro na cara. É a autoridade que só faz valer o poder quando é o seu calo que está doendo, para quem pimenta nos olhos do outros é refresco. Gente que pouco se importa como chega, desde que chegue.

Eu cá por mim, adoro vencer, mas com autenticidade. Sem cascas de bananas, sem pimenta nos olhos dos outros, sem porcolíticos. Compreendo, mas não admiro Maquiavel.


Lembrei-me hoje do conto de Machado de Assis: " Um Apólogo" em que uma linha e uma agulha dialogam, cada uma querendo fazer-se mais importante do que a outra. Ao final vence a linha, em brilhante solução dada pelo Bruxo do Cosme Velho.







UMA PRO SANTO!


Por Yndiara Macedo
 Dedicado ao Dr. Leonardo
( Essa eu garanto que o Senhor nunca ouviu )

Baseado em  um  fato real.

Essa é pro santo!
                Quem nunca ouviu esse jargão da cultura popular, seja em um boteco, padaria, churrasco ou mesmo numa festinha de fundo de quintal?  E garanto que muita gente, mesmo sem assumir, já deu muito golinho “pro santo”.
                Foi numa dessas que o Neco quase se estrepou.  Escapou da cadeia porque teve muita sorte ou porque, como a mulher dele gosta de dizer “O santo dele é muito forte!”.
                Antes que o leitor conjecture como um gesto banal que é derrubar um golinho no chão pode levar alguém em cana, é melhor adiantar que não foi só um golinho e foi pro santo, mas não por chão.
                O Neco estava escarrapachado no sofá, assistindo ao Brasileirão, na TV, quando a patroa chegou da rua, carregada de compras.  O Neco nem pra ajudar a mulher com as sacolas. Ficou vidrado na televisão, parecendo catatônico. Não estava entusiasmado, pois nem era o seu time jogando.  A patroa foi até a cozinha, largou as coisas e voltou até a sala, avisando.
- Neco, amanhã nós vamos ao centro.
- Tá. – foi a resposta curta e em tomo meio vago.
- Neco, você ouviu?!
- Hum... – resmungou ele, com o mindinho fazendo uma verdadeira faxina no nariz.  – Vamos ao centro.
- Você sabe onde é o centro? – insistiu a mulher.  Neco deu de ombros, sem desgrudar os olhos da TV.
 – Na cidade, ué!
- Não, homem! Nós vamos a um Centro! Com C maiúsculo!
                Aí o Neco virou o pescoço, com cara de interrogação.  A mulher bufou, irritada.
- Centro onde tem espírito! Vamos falar com os guias!
                O semblante de Neco se iluminou. Ele esfregou as mãos. Adorava uma macumba! Não que acreditasse. Neco era mais cético que São Tomé. Terreiro, pra ele, significava comida, bebida e um batuquinho de graça.
-Tô nessa!
                A mulher foi pra cozinha, revirando os olhos.  O marido era um herege. Ela costumava frequentar terreiros de tudo quanto é tipo desde menina. Quando ficara noiva, começara a levar o Neco Da primeira vez ele fora arrastado, resmungando que macumba dava azar. Quando chegara ao local, começou a mudar de ideia. Era festa de São Cosme e Damião e tinha comida e doce pra todo o lado. A partir daí, Neco não perdia oportunidade de acompanhar a esposa numa “gira”.  As que gostava mais eram as de exu, onde sempre sobrava uma cachacinha, às vezes um uisquinho, havia farofa e até uma calabresa, de vez em quando.
                E assim, Neco foi com a patroa no tal centro. Ao chegar, ficou decepcionado. Não era um terreiro e sim uma casinha humilde, onde a médium atendia num quartinho dos fundos.
- Não tem batuque? – indagou Neco, a decepção estampada na cara. A mulher deu-lhe uma cotovelada.
- Olha o respeito! – disse entre dentes – Essa mulher é ótima. A Marilda me disse que ela resolve tudo!
                Neco não respondeu.  Largou-se no banquinho, emburrado.  Logo, a esposa foi chamada pelo cambono, o auxiliar das entidades.
- A senhora pode entrar.
                A patroa foi e ficou, e ficou. E ficou.  Neco olhava para o relógio. Que raio a mulher falava lá dentro? Que ele soubesse, não tinham tantos problemas assim.  Então, o cambono apareceu de novo, dirigindo-se a ele.
- Sua mulher disse que o senhor aprecia uma branquinha. O Sento está lhe convidando pra beber com ele.
                Imediatamente o bom humor voltou à alma de Neco.
- Agora falou minha língua! – disse o pau d’água, saltando da cadeira e quase correndo atrás do homem.
                O “santo” estava incorporado em uma senhora de certa idade, aparentava mais de cinquenta, pelo menos. Estava sentada em uma poltrona de veludo vermelho bem velha, de espaldar alto.  Fumava um charuto grande, de cheiro muito forte. O Neco não estava nem aí, os olhos já estavam no garrafão de pinga à frente da mulher, que ficava sobre um desenho a giz, no chão.
- Senta aí, “zifio”.  Seu rabo de saia disse que suncê bebe bem.  Quer beber com eu?
                Neco sentou-se, aceitando prontamente o copo que o cambono lhe estendia.
- Vai ser um prazer!
                 O Neco era bom copo. Ou melhor, bom litro. Entornava todas, sem preconceito algum.  Os amigos diziam que o fígado dele não caída de podre porque estava curtido no álcool.  Quando saiu do quartinho, estava com os olhos vermelhos, mas ainda andava em linha reta. A mulher tomou as chaves do fusquinha das mãos dele.
- Nós vamos de táxi! Larga o carro aí, amanhã a gente vem buscar. Mas que vexame, hein Neco? Acabou com a pinga do santo!
                Neco se fez de surdo.  Foi o santo que oferecera, oras!  Quando chegou em casa, desabou no sofá, onde dormiu, pois a mulher avisou que não ia dormir com bafo de bode ao seu lado.
                No dia seguinte, ainda de manhã, o casal acordou com pancadas na porta.
- Neco, atende que eu tô de camisola! – gritou a mulher do quarto. Um cambaleante Neco se arrastou até a porta, ensonado e ainda mareado pelos resquícios da cachaça. Ao abrir, deu com dois homens de colete. Um deles mostrou o distintivo.
- Senhor Manoel Florípedes?
- Sou eu, sim senhor.
- Nós somos investigadores de polícia. O senhor vai ter que nos acompanhar.
- Mas o que foi que eu fiz?! – indagou Neco, ficando pálido e sóbrio de repente.  A mulher viera do quarto, enrolada num penhoar esfiapado, bem a tempo de ver o marido sendo escoltado à viatura da polícia civil.
- Neco?! O que foi que aconteceu? Neco!
- Liga pro Dr. Ernesto!  - gritou Neco.  Dr. Ernesto era um advogado porta de xadrez que costumava beber e jogar sinuca no boteco do Lino, onde o Neco era freguês. A mulher viu o companheiro entrar na viatura que arrancou com o giroflex ligado, pra que não se sabe, pois o Neco não era perigoso, nunca matara nem uma barata na vida.
                Na delegacia, o delegado encarava Neco, com ar de poucos amigos.
- E aí, seu Manoel, o senhor tem alguma rixa com a Sra. Ercília Antônia da Silva?
- Eu? Nem sei quem é essa mulher! – espantou-se Neco.  O delegado abriu um sorriso irônico.
- Ah, é? Então como é que seu carro foi achado na frente da casa dela, hoje de manhã?
- Ah! Bom, eu deixei o fusca parado lá na Vila do Limão, porque eu bebi um pouquinho além da conta, ontem à noite... mas sei quem é essa Sra. Ervilha não...
- Ah, então o senhor confessa que bebeu! – o delegado apontou o dedo em riste para Neco.
- Bebi, ué... Mas não dirigi, não, doutor! Tanto que deixei o fusca lá em frente ao centro.
- Que centro, rapaz! Tá de brincadeira comigo?!  Lá é a Vila do Limão! Você acabou de confessar! – o delegado espalmou as mãos sobre a mesa. Neco se encolheu.
- Mas, doutor, é isso mesmo... eu estava num centro, na Vila do Limão. Fui me benzer!
- Sim, com a Sra. Ervilha, digo, Elvira... não Ercília!
- Olha, doutor, não sei o nome dela não... minha mulher que me levou lá...
                O delegado recostou-se. Acendeu um cigarro. Neco pensou em avisá-lo sobre o enorme aviso de “Proibido Fumar” na parede bem atrás deles, mas achou melhor não testar a sorte.
- Então. O senhor confessa que foi à casa da Sra. Ervi... Ercília. E foi fazer o que, lá?
- Já falei, doutor delegado, fui me benzer. Minha mulher gosta dessas coisas.
- Sei... e aí, o que aconteceu?
- Onde? – indagou Neco e o delegado explodiu
- Fala logo, rapaz!
                Neco destrambelhou a falar, sem saber nem por que. Contou que fora até lá pra acompanhar a mulher, pensando que era terreiro e se desapontara, mas não tinha nada contra a tal dona, não! O santo quer ela recebia o chamar pra beber com ele, tinha um garrafão de pinga das boas, ele aceitara. O santo o desafiara a beber mais que ele, que não tinha sujeito melhor de gargalo que ele.
- Aí o senhor sabe, doutor, eu não nego fogo. O santo ia mandando encher o meu copo e o dele e nós fomos bebendo, fomos bebendo... quando o garrafão acabou eu fui pra casa de táxi, com a minha mulher, juro eu nem pensei em pegar no volante, excelência!
- E você não ficou pra ver o que aconteceu com a Elvira?
- Não era Ercília, doutor?
- Que seja! Você não soube o que aconteceu com a mulher?!
                Neco fez que não com a cabeça, abestalhado. O delegado então contou o fim da história: a tal Ercília, tão logo ele saíra com a esposa, caiu dura no chão, fora parar no pronto socorro em coma alcoólico. Neco arregalou os olhos.
- Mas como é que eu ia adivinhar, doutor?  Eu pensei que era pro santo!
                No fim das contas, Neco foi liberado. Quando a patroa chegou, debulhada em lágrimas com o Dr. Ernesto a tiracolo, já meio alto com a cachaça, Neco estava saindo da delegacia.
                Até hoje, Neco faz o sinal da cruz e estremece quando vê alguém derrubar bebida “pro santo”.
- Brinca com isso não, rapaz. Eu quase fui parar na cadeia. A sorte é que a família da tal Elcira não quis que o nome dela ficasse "defamado" e tiraram a queixa.  – Neco tomava mais um gole da cachaça e arrematava, com um muxoxo:
- Que culpa eu tive? O santo disse que sabia beber...