Por Yndiara Macedo
Dedicado ao Dr. Leonardo
( Essa eu garanto que o Senhor nunca ouviu )
Baseado em um fato real.
Essa é pro santo!
Quem nunca ouviu esse jargão da
cultura popular, seja em um boteco, padaria, churrasco ou mesmo numa festinha
de fundo de quintal? E garanto que muita
gente, mesmo sem assumir, já deu muito golinho “pro santo”.
Foi
numa dessas que o Neco quase se estrepou.
Escapou da cadeia porque teve muita sorte ou porque, como a mulher dele
gosta de dizer “O santo dele é muito forte!”.
Antes que o leitor conjecture
como um gesto banal que é derrubar um golinho no chão pode levar alguém em
cana, é melhor adiantar que não foi só um golinho e foi pro santo, mas não por
chão.
O Neco
estava escarrapachado no sofá, assistindo ao Brasileirão, na TV, quando a
patroa chegou da rua, carregada de compras.
O Neco nem pra ajudar a mulher com as sacolas. Ficou vidrado na
televisão, parecendo catatônico. Não estava entusiasmado, pois nem era o seu
time jogando. A patroa foi até a
cozinha, largou as coisas e voltou até a sala, avisando.
- Neco, amanhã nós vamos ao centro.
- Tá. – foi a resposta curta e em tomo meio vago.
- Neco, você ouviu?!
- Hum... – resmungou ele, com o mindinho fazendo uma verdadeira
faxina no nariz. – Vamos ao centro.
- Você sabe onde é o centro? – insistiu a mulher. Neco deu de ombros, sem desgrudar os olhos da
TV.
– Na cidade, ué!
- Não, homem! Nós vamos a um Centro! Com C maiúsculo!
Aí o
Neco virou o pescoço, com cara de interrogação.
A mulher bufou, irritada.
- Centro onde tem espírito! Vamos falar com os guias!
O
semblante de Neco se iluminou. Ele esfregou as mãos. Adorava uma macumba! Não
que acreditasse. Neco era mais cético que São Tomé. Terreiro, pra ele, significava
comida, bebida e um batuquinho de graça.
-Tô nessa!
A
mulher foi pra cozinha, revirando os olhos.
O marido era um herege. Ela costumava frequentar terreiros de tudo
quanto é tipo desde menina. Quando ficara noiva, começara a levar o Neco Da
primeira vez ele fora arrastado, resmungando que macumba dava azar. Quando
chegara ao local, começou a mudar de ideia. Era festa de São Cosme e Damião e
tinha comida e doce pra todo o lado. A partir daí, Neco não perdia oportunidade
de acompanhar a esposa numa “gira”. As
que gostava mais eram as de exu, onde sempre sobrava uma cachacinha, às vezes
um uisquinho, havia farofa e até uma calabresa, de vez em quando.
E
assim, Neco foi com a patroa no tal centro. Ao chegar, ficou decepcionado. Não
era um terreiro e sim uma casinha humilde, onde a médium atendia num quartinho
dos fundos.
- Não tem batuque? – indagou Neco, a decepção estampada na
cara. A mulher deu-lhe uma cotovelada.
- Olha o respeito! – disse entre dentes – Essa mulher é
ótima. A Marilda me disse que ela resolve tudo!
Neco
não respondeu. Largou-se no banquinho,
emburrado. Logo, a esposa foi chamada
pelo cambono, o auxiliar das entidades.
- A senhora pode entrar.
A
patroa foi e ficou, e ficou. E ficou.
Neco olhava para o relógio. Que raio a mulher falava lá dentro? Que ele
soubesse, não tinham tantos problemas assim.
Então, o cambono apareceu de novo, dirigindo-se a ele.
- Sua mulher disse que o senhor aprecia uma branquinha. O
Sento está lhe convidando pra beber com ele.
Imediatamente
o bom humor voltou à alma de Neco.
- Agora falou minha língua! – disse o pau d’água, saltando
da cadeira e quase correndo atrás do homem.
O
“santo” estava incorporado em uma senhora de certa idade, aparentava mais de
cinquenta, pelo menos. Estava sentada em uma poltrona de veludo vermelho bem
velha, de espaldar alto. Fumava um
charuto grande, de cheiro muito forte. O Neco não estava nem aí, os olhos já
estavam no garrafão de pinga à frente da mulher, que ficava sobre um desenho a
giz, no chão.
- Senta aí, “zifio”.
Seu rabo de saia disse que suncê bebe bem. Quer beber com eu?
Neco
sentou-se, aceitando prontamente o copo que o cambono lhe estendia.
- Vai ser um prazer!
O Neco era bom copo. Ou melhor, bom litro.
Entornava todas, sem preconceito algum.
Os amigos diziam que o fígado dele não caída de podre porque estava
curtido no álcool. Quando saiu do
quartinho, estava com os olhos vermelhos, mas ainda andava em linha reta. A
mulher tomou as chaves do fusquinha das mãos dele.
- Nós vamos de táxi! Larga o carro aí, amanhã a gente vem
buscar. Mas que vexame, hein Neco? Acabou com a pinga do santo!
Neco se fez de surdo. Foi o santo que oferecera, oras! Quando chegou em casa, desabou no sofá, onde
dormiu, pois a mulher avisou que não ia dormir com bafo de bode ao seu lado.
No dia
seguinte, ainda de manhã, o casal acordou com pancadas na porta.
- Neco, atende que eu tô de camisola! – gritou a mulher do
quarto. Um cambaleante Neco se arrastou até a porta, ensonado e ainda mareado
pelos resquícios da cachaça. Ao abrir, deu com dois homens de colete. Um deles
mostrou o distintivo.
- Senhor Manoel Florípedes?
- Sou eu, sim senhor.
- Nós somos investigadores de polícia. O senhor vai ter que
nos acompanhar.
- Mas o que foi que eu fiz?! – indagou Neco, ficando pálido
e sóbrio de repente. A mulher viera do
quarto, enrolada num penhoar esfiapado, bem a tempo de ver o marido sendo
escoltado à viatura da polícia civil.
- Neco?! O que foi que aconteceu? Neco!
- Liga pro Dr. Ernesto!
- gritou Neco. Dr. Ernesto era um
advogado porta de xadrez que costumava beber e jogar sinuca no boteco do Lino,
onde o Neco era freguês. A mulher viu o companheiro entrar na viatura que
arrancou com o giroflex ligado, pra que não se sabe, pois o Neco não era
perigoso, nunca matara nem uma barata na vida.
Na
delegacia, o delegado encarava Neco, com ar de poucos amigos.
- E aí, seu Manoel, o senhor tem alguma rixa com a Sra. Ercília
Antônia da Silva?
- Eu? Nem sei quem é essa mulher! – espantou-se Neco. O delegado abriu um sorriso irônico.
- Ah, é? Então como é que seu carro foi achado na frente da
casa dela, hoje de manhã?
- Ah! Bom, eu deixei o fusca parado lá na Vila do Limão,
porque eu bebi um pouquinho além da conta, ontem à noite... mas sei quem é essa
Sra. Ervilha não...
- Ah, então o senhor confessa que bebeu! – o delegado
apontou o dedo em riste para Neco.
- Bebi, ué... Mas não dirigi, não, doutor! Tanto que deixei
o fusca lá em frente ao centro.
- Que centro, rapaz! Tá de brincadeira comigo?! Lá é a Vila do Limão! Você acabou de
confessar! – o delegado espalmou as mãos sobre a mesa. Neco se encolheu.
- Mas, doutor, é isso mesmo... eu estava num centro, na Vila
do Limão. Fui me benzer!
- Sim, com a Sra. Ervilha, digo, Elvira... não Ercília!
- Olha, doutor, não sei o nome dela não... minha mulher que
me levou lá...
O delegado recostou-se. Acendeu
um cigarro. Neco pensou em avisá-lo sobre o enorme aviso de “Proibido Fumar” na
parede bem atrás deles, mas achou melhor não testar a sorte.
- Então. O senhor confessa que foi à casa da Sra. Ervi...
Ercília. E foi fazer o que, lá?
- Já falei, doutor delegado, fui me benzer. Minha mulher
gosta dessas coisas.
- Sei... e aí, o que aconteceu?
- Onde? – indagou Neco e o delegado explodiu
- Fala logo, rapaz!
Neco destrambelhou
a falar, sem saber nem por que. Contou que fora até lá pra acompanhar a mulher,
pensando que era terreiro e se desapontara, mas não tinha nada contra a tal
dona, não! O santo quer ela recebia o chamar pra beber com ele, tinha um
garrafão de pinga das boas, ele aceitara. O santo o desafiara a beber mais que
ele, que não tinha sujeito melhor de gargalo que ele.
- Aí o senhor sabe, doutor, eu não nego fogo. O santo ia
mandando encher o meu copo e o dele e nós fomos bebendo, fomos bebendo...
quando o garrafão acabou eu fui pra casa de táxi, com a minha mulher, juro eu
nem pensei em pegar no volante, excelência!
- E você não ficou pra ver o que aconteceu com a Elvira?
- Não era Ercília, doutor?
- Que seja! Você não soube o que aconteceu com a mulher?!
Neco
fez que não com a cabeça, abestalhado. O delegado então contou o fim da
história: a tal Ercília, tão logo ele saíra com a esposa, caiu dura no chão,
fora parar no pronto socorro em coma alcoólico. Neco arregalou os olhos.
- Mas como é que eu ia adivinhar, doutor? Eu pensei que era pro santo!
No fim
das contas, Neco foi liberado. Quando a patroa chegou, debulhada em lágrimas
com o Dr. Ernesto a tiracolo, já meio alto com a cachaça, Neco estava saindo da
delegacia.
Até
hoje, Neco faz o sinal da cruz e estremece quando vê alguém derrubar bebida
“pro santo”.
- Brinca com isso não, rapaz. Eu quase fui parar na cadeia.
A sorte é que a família da tal Elcira não quis que o nome dela ficasse "defamado"
e tiraram a queixa. – Neco tomava mais
um gole da cachaça e arrematava, com um muxoxo:
- Que culpa eu tive? O santo disse que sabia beber...