terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O CONDÃO E O CALDEIRÃO A MULHER ONTEM E HOJE


( Este texto foi apresentado em forma de palestra em 2010 para a Academia Atibaiense de Letras ( Atibaia/SP) e não teria sido possível sem a enorme colaboração do artista plástico e poeta Nestor Lampros )

 

“O problema subjacente não são os homens enquanto sexo. A raiz do problema está no sistema social em que o poder da espada é idealizado — em que homens e mulheres são ensinados a relacionar a verdadeira masculinidade com a violência e a dominação, e a ver os homens que não combinam com este ideal como "demasiado indulgentes" ou "afeminados".” Riane Eisler

 

Repressão Sexual:

- Reprimir: v.t. Conter, reter, sopitar: reprimir as lágrimas. / Impedir a ação de: reprimir os inimigos. / Proibir: reprimir abusos. / Sofrear: reprimir excessos. / Punir. / Violentar. ( Diconário Aurélio)

Repressão s.f. Ato ou efeito de reprimir; coibição, refreamento. ( Dic. Aurélio)

. Ato ou efeito de reprimir; coibição, proibição. 2 Conjunto de medidas violentas, tomadas pelo governo, contra abusos ou delitos, públicos ou particulares. 3 Psicol Processo pelo qual lembranças e motivos são impedidos de atingir a consciência, continuando, no entanto, a operar subconscientemente; é conceito fundamental na psicanálise. ( Dic. Michaelis)

 

Segundo a professora Marilena Chauí, a repressão sexual tem início com a proibição do incesto, quando sexo deixa de ser natural par tornar-se um ato cultural.  O sexo natural, onde não havia proibição de relações sexuais entre familiares, tornou-se um risco para a espécie, pois a prole gerada de casais com afinidade consanguínea era fraca, doente e as vezes não atingia a idade adulta, não podia cooperar com o grupo, ou seja, não era um ser produtivo.

Riane Eisler, no livro O Cálice e a Espada (Ed. Imago/RJ), propõe que as sociedades anciãs (período paleolítico, aproximadamente), existiam sob um sistema cooperativo entre as pessoas, onde não havia guerra nem supremacia entre os sexos, mas sim colaboração. As mulheres traziam para a sociedade o alimento bem como  proporcionavam a manutenção da vida e a fartura, pois só quem dá vida poderia fertilizar a terra. Aos homens cabia a proteção e segurança ( principalmente de animais ) e o uso da força física masculina para o trabalho mais pesado.

“Como regra geral, provavelmente a linhagem era traçada por parte da mãe. As mulheres mais velhas ou chefes dos clãs administravam a produção e distribuição dos frutos da terra, que eram considerados pertencentes a todos os membros do grupo. Ao lado da posse comum dos principais meios de produção e a percepção do poder social como responsabilidade ou administração para benefício de todos surgiu o que parece ter sido uma organização social basicamente cooperativa. Tanto mulheres quanto homens às vezes até mesmo, como em Çatal Hüyük, pessoas de diferentes grupos raciais trabalhavam em cooperativa em prol do bem comum..
Ali , a força física masculina superior não era a base para a opressão social, a guerra organizada ou a concentração da propriedade privada nas mãos dos homens mais fortes. Tampouco oferecia ela as bases para a supremacia dos machos sobre as fêmeas ou dos valores "masculinos" ' sobre os "femininos". Ao contrário, a ideologia prevalente era ginocêntrica, ou centrada na mulher, a deidade representada em forma feminina
Simbolizados pelo Cálice feminino ou fonte da vida, os poderes geradores, alimentadores e criativos da natureza — não os poderes de destruição — tinham, como já vimos, o mais elevado valor. Ao mesmo tempo, a função de sacerdotisas e sacerdotes parecia não ser a de servir e oferecer sanção religiosa a uma feroz elite masculina, e sim beneficiar todos os membros da comunidade da mesma forma como chefes dos clãs administravam as posses comuns e o trabalho das terras..” ( Eisler, Riane. O cálice e a Espada pg 45)”
Ainda segundo Eisler, a ruptura dessa sociedade cooperativa se deu com o aparecimento de povos belicosos, invasores. Com eles surge a necessidade da espada, das artes da guerra e o masculino começa a crescer em detrimento do feminino. Outro fator apontado por Eisler os invasores possuíam outro esquema cultural. Algumas vezes simplesmente pilhavam e agrediam, mas muitos deles conquistavam e dominavam essas sociedades cooperativas que eram basicamente agrárias, voltadas para o culto a terra e a Grande Mãe, portanto, mais pacíficas.
Sob a dominação desses povos belicosos, vai desaparecendo o respeito ao feminino e emergindo a supremacia do masculino, da guerra e mais tarde, do aço.
Mas permaneceu o termo indo-europeu. Ele caracteriza uma longa sucessão de invasões do norte asiático e europeu por povos nômades. Governados por poderosos sacerdotes e guerreiros, eles trouxeram consigo seus deuses masculinos da guerra e das montanhas. E como os arianos na índia, os hititas e mittani no Crescente Fértil, os luwians em Anatólia, os kurgos na Europa Oriental, os aqueus e posteriormente os dórios na Grécia, gradualmente impuseram suas ideologias e modos de vida sobre as terras e povos que conquistaram.” (Eisler, Riane. O cálice e a Espada pg46)



A MULHER ONTEM -  A IDADE MÉDIA

            Com a instauração as supremacia masculina, tudo que pertencia ao feminino foi caindo para segundo plano, tornando-se quase irrelevante em algumas culturas. Entre a maioria dos povos a mulher passou a ser moeda de troca, sua importância se restringindo à vida doméstica e o cuidado com os filhos. Os filhos homens eram cedo separados das mulheres para serem iniciados nas artes masculinas.
            A cultura judaico-cristã institui o temor ao feminino. Através de Eva, a mulher foi proscrita. A Grande Mãe, geradora e provedora, não mais era associada à terra e a fertilidade e fartura, mas  tornou-se a fonte e o símbolo do mal. O feminino, a partir de então, era de natureza perversa, má, só resgatada através da santidade pelo serviço religioso ou através do casamento, para o qual e dentro do qual deveria manter-se casta.
            Georges Duby, um dos maiores pesquisadores da era medieval, fala, em seu Idade Média Idade dos Homens, que o casamento foi instituído como 1) uma forma de manutenção de bens e linhagens 2) Como forma de controle e abstinência sexual.
            A idade Média é misógina, totalmente masculina, com raras exceções. Entretanto, todas as transgressoras foram direta ou indiretamente punidas. A simples transgressão à ordem masculina trazia para suas vidas tormentos e infortúnios. Veja-se o caso de Heloísa, que desafiou a sociedade e principalmente a Igreja, ao desposar Mestre Pedro Abelardo, filósofo e professor. Então, aqueles eu ensinavam deveriam ser castos como os clérigos. Abelardo foi castrado pelo irado tio e tutor de Heloísa  que, sem a a virgindade da moça não poderia mais conseguir um casamento vantajoso.
            A virgindade é outra questão discutida por Duby e por Marilena Chauí:
Hoje mero valor moral ( e cada vez menos valorada) de início a exigência da virgindade era uma questão financeira. As classes nobres não queriam repartir bens, portanto, procuravam restringir a prole, ou não haveria bens suficientes para cada filho, o que empobreceria a linhagem. Um noiva virgem garantia ao seu futuro esposo a segurança da inexistência de filhos bastardos que mais tarde eventualmente viessem a reclamar posses de sua mãe ou entrar em guerra contra seu marido.  
            A mulher era dominada pela força bruta, pela ideologia religiosa e também pela necessidade de sobrevivência. O conceito de mulher independente é muito, muito posterior. Na idade média ( e durante muito tempo após ela) não havia como uma mulher sobreviver sem a família ( ou seja o pai ou tutor) ou sem a Igreja. Ou ela desposava um homem ou desposava Cristo.
Duby conta o caso da condessa do Perche ( França – Sec XII) A condessa escreve à Igreja pedindo conselho,  pois está sendo vitima da brutalidade do marido que, como o Susserano de terras tinha poder de vida e morte sobre a esposa. Ela indagava quais os deveres da mulher casada e se deveria dobrar-se aos desejos do marido, perguntando qual é o quanto do debitum ( termo usado para definir o afeto conjugal) . O abade Adam responde que a alma e o corpo são de propriedade de Deus. Entretanto, segundo a lei do casamento, instituída por Deus, o marido está na posse do corpo da mulher como usufrutuário, mas a alma,. não, a alma pertence apenas a Deus. Ou seja, a mulher tem dois proprietários: o marido e Deus. E tem que bem servir a ambos. Deve entregar o copo para o total controle e uso do marido, mas sem concupiscência, luxúria ou prazer, pois sua alma tem que ser entregue a Deus, mesmo durante o ato sexual.  ( George Duby Idade Média Idade dos Homens fls 32-33).
A mulher é dado, então dois papéis:
- o da santidade, associando-a a virgem – quer pelo casamento religioso, quer pelo casamento carnal que trará a maternidade.
 - o profano/demoníaco, que, de acordo coma ideologia dominante , era o instinto e índole originais da mulher.
            Mulheres estéreis podiam ser dispostas pelo pai/tutor/marido como melhor eles entendessem. A maioria era entregue ( a maioria das vezes vendida) ao meretrício ou banida do lar. Esta segunda opção a levaria, de qualquer jeito, à prostituição ou a morte. Em alguns casos, a filha estéril, portanto inútil à sociedade, era entregue aos conventos para serem religiosas.
O Condão e o Caldeirão
Na literatura, temos claramente essa divisão de papel, na alegoria das bruxas e fadas/princesas dos contos de fadas.
As princesas/fadas   representam a bondade , a beleza, a pureza ou seja  o bom é belo.
As bruxas  são o mal. Portanto são feias, velhas, corcundas, enfim; o mal é feio.
O simbolismo e alegoria dos contos de fadas ( riquíssimos, aliás) mostram a mulher como o condão ( a fada, que é uma representação da Virgem Maria ou dos anjos ) ou o caldeirão ( a bruxa, o demônio).
Analisemos, entretanto, tais alegorias: a fada usa de magia, mas uma magia bondosa, é a fada madrinha, enviada por deus, como um anjo protetor. A fada madrinha vai ajudar a princesa - também bela e boa e obediente ) a ser resgatada da maldade de uma bruxa ( que se encontra também na figura da madrasta má) ou de um perseguidor ( no caso do conto Pele de Asno, o próprio pai incestuoso) . Os poderes da fada são permitidos Deus e legitimados porque praticam o bem, resgatando o belo do feio, a ordem da transgressão.
A bruxa é o mal. Os poderes mágicos da bruxa alteram ( subvertem) a ordem natural das coisas. A bruxa é a figura das antigas sacerdotisas, do culto a natureza. Agora, em vez da mulher respeitada e estimada como provedora/curadora, a bruxa é servidora do demônio. Em verdade a bruxa é a transgressora da ordem do mundo masculino que teme a mulher porque só ela é capaz de parir, de gerar, de transformar. Tem ligação estreita com a natureza. Portanto, deve ser proscrita/morta ou inverterá a ordem instaurada.
O caldeirão fervente da bruxa, antes era o útero fecundo da mãe, agora transfigurado em perigo, em destruição. É o temor masculino de ser dominado pelo feminino. Em certas culturas pagãs eminentemente masculinas havia o medo da vagina dentada: os homens temiam que no interior da vagina houvessem dentes que mastigassem o pênis. Tal temor permaneceu na cultura cristã mas de outra forma, mas o medo é o mesmo, o medo da perda da virilidade pela subversão do poder.

A MULHER HOJE

E hoje, como anda o feminino? Com certeza tivemos grandes avanços, desde as sufragistas e o movimento feminista.
Entretanto, até onde chegam esses avanços? Eis algo em que pensar. Nas culturas Islãmicas, o homem ainda tem poder de vida e morte sobre a mulher. No Irã e no Iraque, uma mulher estuprada pode ser condenada à  morte pois seduziu e tentou o seu estuprador.
Aqui mesmo no Brasil, apesar da Lei Maria Penha, são inúmeros os casos de abusos e violência contra a mulher, a maioria dentro de casa.
Na música e em toda a produção cultural ainda somos todos herdeiros da mentalidade belicosa que trouxe a espada e baniu o cálice. Que substituiu o útero da mãe pelo caldeirão fervente da bruxa. Eu só permite os poderes da fada através da varinha de condão, símbolo fálico, portanto masculino.
A propaganda nos diz que só é bonita quem é magra . Só é gostosa quem tem corpo perfeito. O feminino ainda está subjugado até pelo olhar masculino. Ainda somos fadas, princesas ou bruxas. Basta ver os comerciais de cerveja, as múltiplas notícias de mulheres anoréxicas, em especial as jovens e adolescentes, de mulheres que morrem em mesas de cirurgia plástica, que se matam em academias, que aplicam botox, silicone etc.
Na música, vemos a desvalorização do feminino com “tchans” “ tatis-quebra-barraco”, dancinhas da garrafa, da manivela, isso para citar óbvio. Mas os piores exemplos são a veiculação insidiosa para a manutenção da ordem. As mensagens subliminares, aquilo que não é dito, mas é mostrado, é exemplificado e instituído pelas novelas, pelas musica, pela internet, enfim, pelos veículos de comunicação.

Temos exceções como o filme Shrek, apesar da transgressão, ali estar muito diluída pelo elemento cômico), O amor é cego ( com Jack Blak e Gwineth Paltrow, mas caímos caso de Shrek, o cômico dilui a transgressão).
NO Brasil o grande avanço começou no fim dos anos setenta e expandiu-se nos anos 80, especialmente na literatura infantil e juvenil, com escritoras como Sylvia Orthoff, Marina Colassanti, Ruth Rocha, que escreveram livros cujo tema colocava em cheque os papéis masculino e feminino. Temos o excelente Jorge Miguel Marinho, professor da USP, que escreve crônicas para jovens que levam a reflexão, numa tentativa de reverter a alienação.  

Na Literatura temos exemplos de grandes escritoras: Começo com Simone de Beauvoir, feminista, esposa de Jean Paul Sartre, cuja contribuição para a causa feminina foi essencial. Aqui no Brasil temos Clarice Lispector, Cecília Meireles, Raquel de Queiroz . Mais recentemente, falemos de Martha Medeiros, cujas crônicas são libelos a favor não da mulher, apenas, mas desse sistema de parceria primordial de que fala Riane Eisler. Temos Fernanda Young, responsável pela série “ Os Normais”, e escritora de bons livros voltados para o feminino. Isso fora as escritoras e batalhadoras anônimas em prol não da supremacia do feminino mas do respeito a ele. Do resgate de uma sociedade cooperativa e não exclusivista.

E qual a salvação, enfim? Como chegar num mundo onde haja valores, sim, pois o conceito de bem e mal é o motor da existência, mas um mundo onde não reste espaço para o maniqueísmo, para a ruptura e sim para a cooperação?
Educação. Em especial a familiar e mais especialmente a educação materna. Nós mulheres temos que amamentar nossas filhas e, principalmente, nossos filhos não apenas com o leite, mas temos que dar-lhes o alimento da reestruturação de valores, a recuperação do respeito entre seres humanos. Um homem começa a aprender a lidar com o feminino através de sua mãe.
Despeço-me com Rita Lee/Zélia Duncan, na voz de Maria Rita:





 


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