( Este texto foi apresentado em forma de palestra em 2010 para a Academia Atibaiense de Letras ( Atibaia/SP) e não teria sido possível sem a enorme colaboração do artista plástico e poeta Nestor Lampros )
“O problema subjacente não
são os homens enquanto sexo. A raiz do problema está no sistema social em que o
poder da espada é idealizado — em que homens e mulheres
são ensinados a relacionar a verdadeira masculinidade com a violência e a dominação, e a ver os homens que não combinam com este
ideal como "demasiado indulgentes" ou
"afeminados".” Riane Eisler
Repressão Sexual:
-
Reprimir: v.t. Conter, reter, sopitar: reprimir as lágrimas. / Impedir a ação
de: reprimir os inimigos. / Proibir: reprimir abusos. / Sofrear: reprimir
excessos. / Punir. / Violentar. ( Diconário Aurélio)
Repressão
s.f. Ato ou efeito de reprimir; coibição, refreamento. ( Dic. Aurélio)
. Ato ou efeito de reprimir; coibição, proibição.
2
Conjunto de medidas violentas, tomadas pelo governo, contra abusos ou delitos,
públicos ou particulares. 3 Psicol Processo pelo
qual lembranças e motivos são impedidos de atingir a consciência, continuando,
no entanto, a operar subconscientemente; é conceito fundamental na psicanálise.
( Dic. Michaelis)
Segundo a professora Marilena Chauí, a repressão sexual
tem início com a proibição do incesto, quando sexo deixa de ser natural par
tornar-se um ato cultural. O sexo
natural, onde não havia proibição de relações sexuais entre familiares,
tornou-se um risco para a espécie, pois a prole gerada de casais com afinidade
consanguínea era fraca, doente e as vezes não atingia a idade adulta, não podia
cooperar com o grupo, ou seja, não era um ser produtivo.
Riane Eisler, no livro O Cálice e a Espada (Ed.
Imago/RJ), propõe que as sociedades anciãs (período paleolítico, aproximadamente),
existiam sob um sistema cooperativo entre as pessoas, onde não havia guerra nem
supremacia entre os sexos, mas sim colaboração. As mulheres traziam para a
sociedade o alimento bem como proporcionavam a manutenção da
vida e a fartura, pois só quem dá vida poderia fertilizar a terra. Aos homens
cabia a proteção e segurança ( principalmente de animais ) e o uso da força
física masculina para o trabalho mais pesado.
“Como regra geral,
provavelmente a
linhagem era traçada por parte
da mãe. As mulheres mais velhas ou chefes dos
clãs administravam
a produção e distribuição
dos frutos da terra, que eram
considerados pertencentes a
todos os membros do grupo. Ao lado da posse
comum dos principais meios de produção e a percepção do poder social como
responsabilidade ou administração
para benefício de
todos surgiu o que
parece ter sido uma organização social basicamente cooperativa.
Tanto mulheres quanto homens — às
vezes até mesmo, como em Çatal Hüyük, pessoas de diferentes
grupos raciais trabalhavam em cooperativa em prol do bem comum..
Ali , a força física
masculina superior não era a base para a opressão
social, a guerra organizada ou a concentração da
propriedade privada nas mãos dos homens mais fortes. Tampouco oferecia
ela as bases para
a supremacia dos
machos sobre as fêmeas ou dos valores "masculinos" ' sobre os
"femininos".
Ao contrário, a ideologia prevalente
era ginocêntrica,
ou centrada na mulher, a
deidade representada em forma feminina
Simbolizados pelo Cálice
feminino ou fonte da vida, os poderes geradores,
alimentadores e criativos da natureza —
não os poderes de destruição —
tinham, como já vimos,
o mais elevado valor. Ao mesmo tempo, a função
de sacerdotisas e sacerdotes parecia não ser a de
servir e oferecer sanção religiosa a uma
feroz elite masculina, e sim beneficiar todos os membros da comunidade da mesma forma como chefes
dos clãs administravam
as posses comuns e o
trabalho das terras..” ( Eisler,
Riane. O cálice e a Espada pg 45)”
Ainda segundo
Eisler, a ruptura dessa sociedade cooperativa se deu com o aparecimento de
povos belicosos, invasores. Com eles surge a necessidade da espada, das artes
da guerra e o masculino começa a crescer em detrimento do feminino. Outro fator
apontado por Eisler os invasores possuíam outro esquema cultural. Algumas vezes
simplesmente pilhavam e agrediam, mas muitos deles conquistavam e dominavam
essas sociedades cooperativas que eram basicamente agrárias, voltadas para o
culto a terra e a Grande Mãe, portanto, mais pacíficas.
Sob a dominação
desses povos belicosos, vai desaparecendo o respeito ao feminino e emergindo a
supremacia do masculino, da guerra e mais tarde, do aço.
“Mas permaneceu o termo
indo-europeu. Ele caracteriza uma longa sucessão de invasões do norte asiático e europeu por povos nômades. Governados por poderosos
sacerdotes e guerreiros, eles trouxeram consigo seus
deuses masculinos da guerra e das montanhas. E como os arianos na índia, os hititas e mittani no Crescente Fértil, os luwians em
Anatólia, os kurgos na Europa Oriental, os aqueus e
posteriormente os dórios na Grécia, gradualmente impuseram suas ideologias e modos de
vida sobre as terras e povos que conquistaram.” (Eisler, Riane. O cálice e a Espada
pg46)
A
MULHER ONTEM - A IDADE MÉDIA
Com a instauração as supremacia masculina, tudo que
pertencia ao feminino foi caindo para segundo plano, tornando-se quase
irrelevante em algumas culturas. Entre a maioria dos povos a mulher passou a
ser moeda de troca, sua importância se restringindo à vida doméstica e o
cuidado com os filhos. Os filhos homens eram cedo separados das mulheres para
serem iniciados nas artes masculinas.
A cultura judaico-cristã institui o temor ao feminino.
Através de Eva, a mulher foi proscrita. A Grande Mãe, geradora e provedora, não
mais era associada à terra e a fertilidade e fartura, mas tornou-se a fonte e o símbolo do mal. O feminino,
a partir de então, era de natureza perversa, má, só resgatada através da
santidade pelo serviço religioso ou através do casamento, para o qual e dentro
do qual deveria manter-se casta.
Georges Duby, um dos maiores pesquisadores da era medieval,
fala, em seu Idade Média Idade dos Homens, que o casamento foi instituído como
1) uma forma de manutenção de bens e linhagens 2) Como forma de controle e
abstinência sexual.
A idade Média é misógina, totalmente masculina, com raras
exceções. Entretanto, todas as transgressoras foram direta ou indiretamente
punidas. A simples transgressão à ordem masculina trazia para suas vidas
tormentos e infortúnios. Veja-se o caso de Heloísa, que desafiou a sociedade e
principalmente a Igreja, ao desposar Mestre Pedro Abelardo, filósofo e
professor. Então, aqueles eu ensinavam deveriam ser castos como os clérigos.
Abelardo foi castrado pelo irado tio e tutor de Heloísa que, sem a a virgindade da moça não poderia
mais conseguir um casamento vantajoso.
A virgindade é outra questão discutida por Duby e por Marilena
Chauí:
Hoje mero valor moral ( e
cada vez menos valorada) de início a exigência da virgindade era uma questão
financeira. As classes nobres não queriam repartir bens, portanto, procuravam
restringir a prole, ou não haveria bens suficientes para cada filho, o que
empobreceria a linhagem. Um noiva virgem garantia ao seu futuro esposo a
segurança da inexistência de filhos bastardos que mais tarde eventualmente
viessem a reclamar posses de sua mãe ou entrar em guerra contra seu
marido.
A
mulher era dominada pela força bruta, pela ideologia religiosa e também pela
necessidade de sobrevivência. O conceito de mulher independente é muito, muito
posterior. Na idade média ( e durante muito tempo após ela) não havia como uma
mulher sobreviver sem a família ( ou seja o pai ou tutor) ou sem a Igreja. Ou
ela desposava um homem ou desposava Cristo.
Duby conta o caso da
condessa do Perche ( França – Sec XII) A condessa escreve à Igreja pedindo
conselho, pois está sendo vitima da
brutalidade do marido que, como o Susserano de terras tinha poder de vida e
morte sobre a esposa. Ela indagava quais os deveres da mulher casada e se deveria
dobrar-se aos desejos do marido, perguntando qual é o quanto do debitum ( termo
usado para definir o afeto conjugal) . O abade Adam responde que a alma e o
corpo são de propriedade de Deus. Entretanto, segundo a lei do casamento,
instituída por Deus, o marido está na posse do corpo da mulher como
usufrutuário, mas a alma,. não, a alma pertence apenas a Deus. Ou seja, a
mulher tem dois proprietários: o marido e Deus. E tem que bem servir a ambos.
Deve entregar o copo para o total controle e uso do marido, mas sem concupiscência,
luxúria ou prazer, pois sua alma tem que ser entregue a Deus, mesmo durante o
ato sexual. ( George Duby Idade Média
Idade dos Homens fls 32-33).
A mulher é dado, então dois
papéis:
- o da santidade, associando-a
a virgem – quer pelo casamento religioso, quer pelo casamento carnal que trará
a maternidade.
- o profano/demoníaco, que, de acordo coma
ideologia dominante , era o instinto e índole originais da mulher.
Mulheres estéreis podiam ser dispostas pelo
pai/tutor/marido como melhor eles entendessem. A maioria era entregue ( a
maioria das vezes vendida) ao meretrício ou banida do lar. Esta segunda opção a
levaria, de qualquer jeito, à prostituição ou a morte. Em alguns casos, a filha
estéril, portanto inútil à sociedade, era entregue aos conventos para serem
religiosas.
O
Condão e o Caldeirão
Na literatura, temos
claramente essa divisão de papel, na alegoria das bruxas e fadas/princesas dos
contos de fadas.
As princesas/fadas representam a bondade , a beleza, a pureza
ou seja o bom é belo.
As bruxas são o mal. Portanto são feias, velhas,
corcundas, enfim; o mal é feio.
O simbolismo e alegoria dos
contos de fadas ( riquíssimos, aliás) mostram a mulher como o condão ( a fada,
que é uma representação da Virgem Maria ou dos anjos ) ou o caldeirão ( a
bruxa, o demônio).
Analisemos, entretanto, tais
alegorias: a fada usa de magia, mas uma magia bondosa, é a fada madrinha,
enviada por deus, como um anjo protetor. A fada madrinha vai ajudar a princesa
- também bela e boa e obediente ) a ser resgatada da maldade de uma bruxa ( que
se encontra também na figura da madrasta má) ou de um perseguidor ( no caso do
conto Pele de Asno, o próprio pai incestuoso) . Os poderes da fada são
permitidos Deus e legitimados porque praticam o bem, resgatando o belo do feio,
a ordem da transgressão.
A bruxa é o mal. Os poderes
mágicos da bruxa alteram ( subvertem) a ordem natural das coisas. A bruxa é a
figura das antigas sacerdotisas, do culto a natureza. Agora, em vez da mulher
respeitada e estimada como provedora/curadora, a bruxa é servidora do demônio.
Em verdade a bruxa é a transgressora da ordem do mundo masculino que teme a
mulher porque só ela é capaz de parir, de gerar, de transformar. Tem ligação
estreita com a natureza. Portanto, deve ser proscrita/morta ou inverterá a
ordem instaurada.
O caldeirão fervente da
bruxa, antes era o útero fecundo da mãe, agora transfigurado em perigo, em
destruição. É o temor masculino de ser dominado pelo feminino. Em certas
culturas pagãs eminentemente masculinas havia o medo da vagina dentada: os
homens temiam que no interior da vagina houvessem dentes que mastigassem o
pênis. Tal temor permaneceu na cultura cristã mas de outra forma, mas o medo é
o mesmo, o medo da perda da virilidade pela subversão do poder.
A
MULHER HOJE
E hoje, como anda o feminino? Com certeza tivemos grandes
avanços, desde as sufragistas e o movimento feminista.
Entretanto, até onde chegam esses avanços? Eis algo em
que pensar. Nas culturas Islãmicas, o homem ainda tem poder de vida e morte
sobre a mulher. No Irã e no Iraque, uma mulher estuprada pode ser condenada à morte pois seduziu e tentou o seu estuprador.
Aqui mesmo no Brasil, apesar da Lei Maria Penha, são
inúmeros os casos de abusos e violência contra a mulher, a maioria dentro de
casa.
Na música e em toda a produção cultural ainda somos todos
herdeiros da mentalidade belicosa que trouxe a espada e baniu o cálice. Que
substituiu o útero da mãe pelo caldeirão fervente da bruxa. Eu só permite os poderes
da fada através da varinha de condão, símbolo fálico, portanto masculino.
A propaganda nos diz que só é bonita quem é magra . Só é
gostosa quem tem corpo perfeito. O feminino ainda está subjugado até pelo olhar
masculino. Ainda somos fadas, princesas ou bruxas. Basta ver os comerciais de
cerveja, as múltiplas notícias de mulheres anoréxicas, em especial as jovens e
adolescentes, de mulheres que morrem em mesas de cirurgia plástica, que se
matam em academias, que aplicam botox, silicone etc.
Na música, vemos a desvalorização do feminino com
“tchans” “ tatis-quebra-barraco”, dancinhas da garrafa, da manivela, isso para
citar óbvio. Mas os piores exemplos são a veiculação insidiosa para a
manutenção da ordem. As mensagens subliminares, aquilo que não é dito, mas é
mostrado, é exemplificado e instituído pelas novelas, pelas musica, pela
internet, enfim, pelos veículos de comunicação.
Temos exceções como o filme Shrek, apesar da transgressão,
ali estar muito diluída pelo elemento cômico), O amor é cego ( com Jack Blak e
Gwineth Paltrow, mas caímos caso de Shrek, o cômico dilui a transgressão).
NO Brasil o grande avanço começou no fim dos anos setenta
e expandiu-se nos anos 80, especialmente na literatura infantil e juvenil, com escritoras
como Sylvia Orthoff, Marina Colassanti, Ruth Rocha, que escreveram livros cujo
tema colocava em cheque os papéis masculino e feminino. Temos o excelente Jorge
Miguel Marinho, professor da USP, que escreve crônicas para jovens que levam a
reflexão, numa tentativa de reverter a alienação.
Na Literatura temos exemplos de grandes escritoras:
Começo com Simone de Beauvoir, feminista, esposa de Jean Paul Sartre, cuja
contribuição para a causa feminina foi essencial. Aqui no Brasil temos Clarice
Lispector, Cecília Meireles, Raquel de Queiroz . Mais recentemente, falemos de
Martha Medeiros, cujas crônicas são libelos a favor não da mulher, apenas, mas
desse sistema de parceria primordial de que fala Riane Eisler. Temos Fernanda
Young, responsável pela série “ Os Normais”, e escritora de bons livros
voltados para o feminino. Isso fora as escritoras e batalhadoras anônimas em
prol não da supremacia do feminino mas do respeito a ele. Do resgate de uma
sociedade cooperativa e não exclusivista.
E qual a salvação, enfim? Como chegar num mundo onde haja
valores, sim, pois o conceito de bem e mal é o motor da existência, mas um
mundo onde não reste espaço para o maniqueísmo, para a ruptura e sim para a
cooperação?
Educação. Em especial a familiar e mais especialmente a
educação materna. Nós mulheres temos que amamentar nossas filhas e,
principalmente, nossos filhos não apenas com o leite, mas temos que dar-lhes o
alimento da reestruturação de valores, a recuperação do respeito entre seres
humanos. Um homem começa a aprender a lidar com o feminino através de sua mãe.
Despeço-me com Rita Lee/Zélia Duncan, na voz de Maria Rita:
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