sexta-feira, 26 de abril de 2013
Elegia à "Pintada"
Escrevi este texto em homenagem à Pintada, a gatinha morta em Itatiba, por um completo imbecil, covarde e assassino, e a tantas outras criaturinhas que são seviciadas, torturadas, abandonadas e/ou mortas, sem nenhuma razão, pois não há nenhuma, *nenhuma*, razão nisso. Publiquei no meu blog e enviei ao Jornal de Itatiba, para a coluna recebemos. Estou com o coração realmente partido e indignada com a crueldade e impunidade que campeia solta. Essa semana uma dentista foi queimada viva porque não tinha dinheiro para dar para dois vagabundos safados. Tenho VERGONHA das leis (???) deste país, que acobertam a criminalidade.
“Eu entrei naquele lugar sem maldade. Não ia roubar nem estragar nada. O que me atraiu foi o cheirinho da comida.
Eu estava bem acostumada com as redondezas. As pessoas gostavam de mim. Eu era bem cuidada e feliz. O que mais gostava de fazer era correr e pular entre os muros e no parquinho, onde ficam as crianças. Elas me chamavam e eu sempre ia. Gostava de sentir as mãozinhas alisando meu pelo macio. Dengosa, eu sempre ronronava diante de carinho.
Entrei naquele lugar, naquele dia, inocente. Bichinhos não fazem as coisa intencionalmente, por maldade, por querer, como os ditos seres “humanos”. A gente não faz cocô nem xixi na sua porta, na calçada, no seu estabelecimento, no seu quintal, porque não vai com a sua cara. A gente não mente e pede um real pra comida e vai comprar cachaça. Quando a gente mia ou gane, os olhinhos embaciados, é porque está com fome de verdade. A gente não mente que precisa de dinheiro pra passagem ou pro remédio pra comprar droga. A gente nem sabe o que é o dinheiro de que os humanos gostam tanto.
Eu entrei naquele lugar porque, curiosa e acostumada ao carinho, achei que poderia passear no local, quem sabe ganhar mais afagos e até um pouco da comidinha que tinha aquele cheirinho tão bom. Não foi maldade. Não pretendi insultar nem prejudicar ninguém.
Quando aquele ser veio até mim, ronronei, imaginando a mão deslizando pelo meu corpinho rechonchudo e macio. Só quando ele estava mais perto é que meu instinto me avisou do perigo. Mas era tarde. Fui acuada, pega e, em vez do costumeiro afago, apanhei. Apanhei, apanhei e apanhei do ser indiferente aos meus gritos e ao sangue que escorria da minha boquinha, do narizinho. Meu último olhar foi para o meu algoz, que ainda dizia algo que eu não compreendia, mas sentia que eram insultos. Que era veneno escorrendo da voz .
Não. Eu não odeio esse moço. Bichinhos desconhecem esse sentimento que ironicamente é humano. Bichinhos sentem dor e se afastam de quem não lhes ama, mas não são incapazes da perversidade humana. Não odeio quem me matou. Tenho certeza que em seu peito bate um coração mais magoado e certamente menos amado do que foi o meu. “
Este texto é em homenagem as criaturinhas que perdem suas vidas sem nenhum motivo plausível, quando, diante da falta de cuidados da dureza dos "seres humanos", deveriam ser retiradas por alguma ong, pela zoonose, enfim, seres vivos que não mereciam morrer, torturados, em dor.
Yndiara Rosa Macedo Isejima Lampros.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
Carta ao Cidadão Brasileiro
Hoje recebi uma postagem no Facebook e quero comentá-la por considerar importante o relato. A postagem vai transcrita após este texto, mas em resumo, uma amiga presenciou violência, falta de segurança e uso de drogas em um evento ocorrido num clube da cidade em que ambas residimos. Resido em uma cidade do interior para a qual eu e minha família viemos em busca de mais qualidade de vida, em especial segurança pública e valores familiares. Por essas e outras, escrevo essa carta aberta aos cidadãos brasileiros:
Ao Cidadão Brasileiro,
Caro conterrâneo:
Sei muito bem que por diversas razões, valores estão se perdendo e que não é tarefa fácil falar de valores a uma sociedade cada dia mais individualista, egoísta e acéfala ( descerebrada, caso você não conheça a palavra). Tampouco, tal tarefa não é inglória. Basta ter objetividade e vontade.
De nada adiantam discursos simplesmente moralistas e vazios. Educa-se, em primeiro lugar, com exemplo. Você pode dizer: e que exemplo tem nossa infância e juventude? Corrupção para todo o lado, impunidade, ladrões do dinheiro publico reassumindo altos cargos no Congresso, torcedores de futebol sendo presos no exterior e se escondendo atrás de um menor de idade, uma vez que menores podem praticar verdadeiras barbaridades neste país, com a aquiescência de leis brandas e ineficazes.
Precisamos de maior atuação das autoridades na fiscalização e punição de irregularidades que põem os cidadãos em risco! Pois é, cidadão: concordo, mas quem tem que exigir isso é você. E eu. Nós é que temos que lembrar aos Educadores para que o sejam com *E* maiúsculo e se lembrem de que Educar não é só "dar matéria" e preencher papeleta. Valores vêm da família, mas senso crítico e aprendizado da cidadania também se encontram na escola.
Ah, não está feliz com o salário, cidadão brasileiro? Lute por ele, saia na rua, grite, manifeste-se, como você faz quando seu time perde, ou sua escola de samba é prejudicada. Você quebra estádio de futebol por causa de time, clube noturno por causa de mulher, pede a liberação da maconha. E fica calado quando o Calheiros e o Genoíno voltam ao poder, a coroa de louros mal disfarçando o cheiro da podridão. Nunca vi um panelaço por conta do aumento da gasolina, das tarifas de ônibus, dos juros abusivos. Você, brasileiro, derruba alambrados nos estádios e mata em nome do seu time. Vaia uma blogueira, defendendo a ideologia do governo Cubano. Nunca vi você arregimentar seus amigos e vizinhos para falar da buraqueira das ruas, dos esgotos a céu aberto, para exigir a devolução do seu dinheiro roubado pelos anões do orçamento, mensaleiros, toda essa gente que desfila de carro importado enquanto você anda como gado de corte nos trens da central, da CPTU, do metrô, ou tem o seu veículo retomado porque está desempregado, porque a inflação existe e mentem que não. Você vota nas gostosas do BBB, essa Big Bosta, e não lembra o nome do seu candidato na última eleição. Você troca o seu voto por favores pessoais, por uma geladeira de segunda mão, por meio par de sapatos, por uma possibilidade remota de ser ASPONE por quatro anos, por bolsa família de 30 contos ao mês, por 50 reais que não paga uma compra quinzenal enquanto o safado que lhe comprou está enriquecendo, trabalhando para o próprio bolso. É brasileiro, me desculpe, mas eu vou ter que cassar o seu título de cidadão. Para recuperar é fácil: três doses de vergonha na cara ao dia que devem ser tomadas com uma cáspsula de coragem. Omitir-se é fácil, mas o preço é alto. O gigante acordou? Que nada, continua deitado eternamente em berço nada esplêndido.
Yndiara Macedo
A seguir, a postagem no facebook:
Herika Varela
Show Raça Negra /Pixote/Papel.com - Itatiba EC
Lamentável alguns fatos, mesmo que isolados que ocorreram no evento!
Depois da Tragédia de Sta Maria passo a me preocupar em frequentar locais absurdamente lotados, e não foi diferente neste último sábado! (Embora esteja ciente das normas de segurança e equipe especializada que o IEC possui)! Não sei precisar qtas pessoas estavam no " clubão" mas certamente foi além do aceitável!!! Ninguém conseguia se mexer e não parava de lotar... Conclusão: onde paramos tivemos que ficar porque não era possível circular!!! Os seguranças "de preto" contratados ao invés de separar as brigas apaziguando a situação, brutalmente chegavam, sim de forma violenta para " separar" "gentilmente tirando a pessoa do salão" ( no Carnaval a equipe de Segurança do Clube não agiu dessa forma e tudo ocorreu bem mais tranquilo ao meu ver). Mais de um amigo pode presenciar no banheiro masculino a utilização escancarada de drogas, com carreiras feitas em celulares tipo " smartfone" "Onde está a revista da entrada???" Como passaram com droga para parte interna do Clube. Bom, no aperto, fila imensa para wc, pouco conseguindo ver o show, depois de outra imensa fila para comprar fichas para bebidas fui tentar pegar uma mísera "água" e estando de costas não consegui perceber uma briga e acabei sendo acertada com um belo " SOCO" em
meu ombro! Justo eu que nunca participei de uma briga...
Ahhhh não posso deixar de questionar que horas banda da cidade Papel.com fez seu show???
Que as falhas sejam sanadas para os demais eventos programados, assim seus sócios e visitantes poderão sair ao menos satisfeitos ajudando a falar bem do "clubão" como sempre ocorreu!!!
terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
REFÉNS DO SILÊNCIO
Por Yndiara Macedo
Era alta madrugada quando André
fechou a porta de casa, cuidadoso para não romper o silêncio. Estava a caminho
do banheiro quando ouviu a porta do quarto da mãe se abrir. Engoliu em seco,
esperou. Talvez se tratasse só um golpe de ar inoportuno, para importunar-lhe
os nervos. André prendeu a respiração, aguardando o momento para se mover,
entrar no banheiro. Sua porção racional mostrava-lhe o ridículo da situação.
Ele era um adulto de 30 anos que
trabalhava, pagava metade do aluguel e outras despesas da casa. Pagava muitas
contas para ter que prestar contas dos seus atos. Ele abriu devagar a porta do banheiro. Ao som
mínimo do “click” da maçaneta, ecoou a voz da mãe, amargurada.
- A essa hora,
André Luiz?
A boca do rapaz
abriu e fechou, mas a voz não saiu. Dizer o quê? Era tarde mesmo.
- Onde você estava
até agora? E esse cheiro? Não é maconha, é?
- Não, mãe. É
meu perfume... – respondeu André, num fio de voz. A mãe não ouviu, como sempre,
ou entendeu o que quis. Como sempre.
- Só faltava
essa! Meu único filho, maconheiro. Meu Deus, que vergonha teria seu pai. Em que
companhias você tem andado?
André desistiu de se defender antes mesmo de tentar. Seria um esforço
vão. Nascera condenado. Seu Júri era a família, desde o primeiro ancestral até
o último bebê que nascera, de uma prima distante. A promotoria era o mundo de gente normal,
ordeira, temente a Deus. “ Bobagem” lhe dizia a consciência “ O mundo mudou. O
que é ser normal?”.
Mas a consciência
de André não conseguia ser seu Juiz. A menção ao pai lhe provocou o conhecido
arrepio na espinha, que antecedia as memoráveis surras paternas, que ele levava
de vez em sempre. O velho morrera havia sete anos, bem a tempo de André
desistir da faculdade de Engenharia. Por dias ouvira a ladainha amargurada da
mãe que o acusava de apunhalar o pai pelas costas. Logo ele, um homem tão bom,
que queria ver o filho doutor, formado! Um homem tão bom!
André
despiu-se e foi para debaixo do chuveiro.
Um homem tão bom, pensava André enquanto deslizava o sabão pelo corpo
cheio de marcas. Mas nenhuma era tão feia quanto as que havia na sua lembrança.
A mais horrenda era do dia em que o pai o pegara na casa da vizinha, brincando
de casinha. Ele tinha uma boneca nos braços, embalava-a com carinho. O pai o arrastara
para casa pelas orelhas, trancou-se com ele no banheiro. Primeiro levou uma
surra de cinta e socos até entortar.
- Onde já se viu
de boneca na mão! Isso lá é coisa de homem?!
- A gente tava
brincando de casinha... – murmurava o menino entre soluços.
- Homem não
brinca dessas coisas! Casinha é coisa de mulherzinha!
- Mas eu era o
pai! – chorava a criança, Quanto mais lágrimas, mais apanhava.
- Que pai que
nada! Já me viu de bonequinha por aí?! E engole o choro. Aprende a apanhar que
nem macho!
O pai fizera ele se despir,
agarrou-o pelos testículos e pelo pênis.
- Está vendo
isso aqui? Olha, moleque!
André baixou os
olhos cheios de dor para a os ainda pequenos órgãos. Tinha onze anos.
- Se eu lhe ver
de bonequinha na mão, brincando com menina ou chorando que nem mariquinha eu
vou cortar isso tudo fora e dar pros cachorros.
– sibilou o pai. Tinha o hálito carregado de cigarro, que fumava um
atrás do outro e que o matou, aos 59 anos, vítima de câncer generalizado.
- Um homem tão
bom. – lamuriava-se a mãe, do corredor. – Não merecia isso.
André enfiou a cabeça debaixo do
chuveiro até que só ouvisse o barulho da água martelando sobre a cabeça. Desde
os onze anos aprendera a apenas ouvir e calar, mesmo a dor. Ele não entendia
porque era diferente, porque na escola gostava mais da companhia das meninas e
ao ver novelas queria namorar os galãs e não as mocinhas. Não era de propósito,
ele não escolhia ser assim, não escolhia ser espancado pelo pai nem escarnecido
pelos outros coleguinhas.
- Mulherzinha! Mulherzinha!
Mulherzinha! – gritavam os garotos na escola.
- Não sou não! –
ele gritava de volta. E não era mesmo. André não era mulher, nem queria ser.
Mas queria namorar o Indiana Jones e não a Madona. Não sabia por que e não
tinha a quem perguntar. Cresceu isolado. Na adolescência, ia escondido na casa
das amigas, dizia à mãe que ia jogar futebol ou fazer trabalho de grupo. Aos 18
anos seu pai lhe deu dinheiro para “ ir pegar uma dona”. O rapaz não entendeu.
- Uma dona!
Mulher da vida! Puta! Prostituta! – rosnou o pai , tossindo com a fumaça do
cigarro. André pegou o dinheiro e saiu
porta a fora, antes que apanhasse, sem saber para onde ir. Ele obviamente sabia o que era prostituição,
mas não onde encontrar. A simples ideia de pagar por sexo o enojava. Será que o pai
dormia com putas antes de dormir com sua mãe? Vomitou na calçada. Mas aquele era o conselho de um homem bom.
Seu pai. O modelo a seguir até o bordel mais próximo e deitar com uma
desconhecida.
O
rapaz tomou um ônibus, foi até o ponto final. Esperou o tempo passar e pegou o
último ônibus de volta. Foi a única vez que não apanhou ou levou sermão ao
chegar tarde em casa. Os pais estavam recolhidos, ele se trancou no quarto.
Escondeu bem o dinheiro dado pelo pai. Depois pensaria no que fazer com aquilo.
Esmola na igreja, um presente pra mãe, qualquer coisa.
Com o passar do tempo, André
falava cada vez menos com o pai e só o necessário. Passou no vestibular para Engenharia para
escapar da surra certa se falhasse. A
mãe era uma figura apática, quase ausente da sua vida. Se o pai não era
seu modelo, ela tampouco. Ele vivia para
dentro, na solidão e no silêncio. Sempre
o silêncio.
Quando o pai estava nas últimas,
foi vê-lo no hospital. Pouco restava de força no corpo magro esticado no leito.
Com os pulmões, esôfago e faringe tomados pelo câncer, o velho já quase não
podia falar, mas os olhos continuavam agressores. Foi com eles que fitou André,
que estava sentado em uma cadeira, no canto mais distante possível. A mãe tinha
ido ligar para uma das suas irmãs, aproveitando o horário de visitas. André olhava para o relógio no pulso e para a
porta, rezando para a mãe voltar logo e ele poder ir embora. Falar o quê? Das
insuportáveis aulas de cálculo, das tediosas aulas de mecânica, da solidão nos
intervalos ou na hora do almoço porque ele não era do time da cerveja nem do
futebol de domingo, ou da caça à mulherada?
Nada tinha a dizer ao pai que não havia lhe deixado nem um resto, uma
migalha de amor.
- Eu já vou
indo... – André se levantou. Mais cinco minutos e encerravam-se as visitas –
Mamãe já vem.
Os olhos agressores do pai
fitaram-no. A boca trancada numa expressão dura. O rapaz abriu a porta e ouviu
a voz roufenha do pai chamá-lo.
- André...
Ele se voltou. O pai tossia e
respirava com dificuldade, juntando esforços para falar:
- ... eu sei o
que você é.
Essa foi a última frase que ele
ouviu do pai. Cuspidas com algo pior que ódio. Um desprezo arrancado do fundo
da alma tão tumorosa quanto o corpo.
André deixou a
faculdade, arranjou um bom emprego graças às suas habilidades em informática,
área da qual ele realmente gostava. Conheceu
outras pessoas, descobriu que havia outros iguais a ele: advogados,
professores, arquitetos, psicólogos, vendedores, caixas de loja. Gente. Aprendeu onde encontrar um pouco de
atenção e de carinho, mas sempre discreto, sempre em silêncio. Amar se aprende
amando e ele não tivera esse tipo de educação. Na televisão, especialistas falavam em
opção x orientação. André não optara. Ninguém opta por uma vida que é imposta à
margem. Tampouco fora orientado.
Simplesmente era... o quê? André engolia
os próprios pensamentos, recusando-se a usar quer o rótulo quer o termo
politicamente correto. “Sou Humano”
dizia-se, mas como não conseguia crer nisso, diante do olhar reprovador e
severo da mãe que lhe cobrava esposa e filhos. André temia o olhar dos outros,
olhava para dentro de si e via um abismo. Evitava espelhos, que o incomodavam.
André fechou a torneira do
chuveiro. Finalmente, a mãe cansara e fora dormir. Ele enxugou-se e foi para o
quarto. Havia uma mensagem no celular.
“ Me liga. Tem churrasco amanhã. Elisa”
Elisa era uma colega de trabalho.
Loira, muito bonita, disputada pela homarada do escritório e do resto do mundo.
Aproximara-se de André porque fora o único que não lhe passara uma cantada nos
primeiros minutos de conversa. Tornaram-se amigos. André era bom ouvinte e se
tornou confidente da moça. Diferente dele, Elisa não sofrera abusos na
infância, nunca tivera problemas na escola ou na família. A não ser a incômoda
mania da mãe e das tias de quererem bancar o cupido. Elisa contou a André como
se horrorizava ante a ideia de acabar como a irmã, cujo marido a traía desde o
tempo de namoro. Ou como as primas com os maridos grosseiros, entediados, mais
interessados em futebol e cerveja do que no casamento ou nos filhos.
- Nem todo homem
é assim. – Argumentou André, lembrando
do pai mas se sentindo na obrigação de não desiludir uma mulher tão doce e tão
bonita. – Tem gente boa no mundo.
- Eu sei. –
abriu um lindo sorriso – Não tenho raiva dos homens. O problema é o seguinte...
entre o Indiana Jones e a Madona, eu prefiro a Madona.
André demorou para encontrar a
voz. Como assim? Ela era tão linda, popular.
- Por quê? – ele
indagou. – Você tem uma vida tão tranquila...
- Minha vida é
tranquila porque ninguém sabe dela.
A partir dali, se tornaram quase
inseparáveis. André a levava em casa de
vez em quando, e juntos enfrentavam as longas ladainhas da mãe dele, que queria
netos, que sofria muito, que sentia falta do marido.
- Um homem tão
bom...
Por sua vez, André não se
importava de acompanhar Elisa nas festinhas da família dela e admirar-se de
como o mundo não reconhece impostores, quando não quer. Por isso, no dia seguinte ele iria envergar sua melhor
fantasia de macho e acompanhar Elisa ao churrasco, sorrir diante das piadinhas
sobre quando eles iam parar com o papo de amiguinhos e “se assumir”.
Ambos amigos, aliados.
Reféns do mesmo silêncio.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
Cidadania Cultural: Realidade ou Utopia? Uma Visão do Artista
Por
Nestor Lampros e Yndiara Macedo
Utopia:
“tem como significado mais comum a ideia de civilização ideal, imaginária, fantástica. Pode referir-se a uma
cidade ou a um mundo, sendo possível tanto no futuro, quanto no presente, porém
em um paralelo. A palavra foi criada a partir dos radicais gregos οὐ, "não" e τόπος, "lugar",
portanto, o "não-lugar" ou "lugar que não existe". (
Wikipedia)
Cidania Cultural: “Segundo Bastos (2002:134), assinalou se por um
lado a Constituição Federal trouxe um aporte significativo de leis que
alcançaram um escopo fundamental de variáveis para a construção da cidadania
cultural, por outro, tornou-se necessário um engajamento da sociedade
organizada como forma dar sentido a essa nova ordem jurídica. Corroborando com
esta ideia Soares (2001 )afirma que a promoção da acessibilidade aos bens
culturais, enfatizando que ela cumpre as determinações da constituição Federal
de 1988, quando consagra os direitos das portadoras de deficiência física e
também proclama o direito a cultura, em seu artigo 215,seção II, da cultura:. O Estado garantirá a
todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura
nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações
culturais.”
“Patrimônio cultural é o conjunto de
todos os bens, materiais ou imateriais, que, pelo
seu valor próprio, devem ser considerados de interesse relevante para
a permanência e a identidade da cultura de um povo.
O
patrimônio é a nossa herança do passado, com que vivemos hoje, e que passamos
às gerações vindouras.” Wikipédia
Segundo
dicionários e iminentes filósofos, cidadania cultural é o direito de qualquer
cidadão não apenas ao acesso à cultura como à sua produção e difusão.
Entretanto, todos os textos aos quais tivemos acesso não tratavam da produção,
do fazer a Arte. Ocupavam-se das teorias políticas, em especial as que rechaçam
o neo liberalismo e privilegiam o que chamaremos, á falta de maior conhecimento
teórico, de filosofia de esquerda. Nesses textos (incluindo
a leitura de Marilena Chauí ), fala-se muito mais da necessidade do acesso á
população aos bens culturais do que sobre sua produção, propriamente dita.
Os
bens culturais no nosso país estão sendo
respeitados de acordo com a própria visão de bem cultural- plenamente acessível
a todos, protegido, veiculado e mantido pela sociedade? Pensamos que esta
questão está sendo silenciada pelos próprios interesses que cercam os valores
desses mesmos bens culturais.
O bem cultural não é monopólio de um partido, de um governo (se
pudéssemos colocá-lo num extremo provável) tampouco é um bem passível de uso
para promover interesses particulares que não deixam que este produto seja
socialmente desfrutado, ou dividido, ou mesmo exposto.Nenhum desses extremos é positivo,
nem mesmo condiz com o que consta no artigo 215, seção II da nossa Constituição.
Na perspectiva desses extremos que mencionamos, a chamada Cidadania Cultural
nada mais é do que pura Utopia, ou seja, um não lugar. Um conceito apenas
sonhado, irrealizado.
Nosso país é rico em cultura até
porque a formação do Brasileiro é multicultural. Temos influências diversas
desde as três etnias que se encontraram no descobrimento do país até as diversas
etnias que se instalaram no Brasil ao longo do tempo (ariana, asiática,
islâmica, semita, só para citar alguns exemplos). O Brasil, portanto é rico em
manifestações culturais diversas ( e isso não é utopia), mas a cultura que o
povo cria com sua peculiaridade anda se prestando ao uso mercantilizado,
devorando, mastigando e triturando
manifestações culturais autênticas para vomitá-las no mercado em uma pasta
massificadora e alienante, sem preocupação outra que não o consumo rápido. Em
vez de cidadania cultural, temos então a voracidade do capitalismo desenfreado,
interessado em venda/consumo e que serve aos interesses de uma política cada
vez mais corrupta e esta, por sua vez, serve e se serve de uma “fast
food cultural”.
Onde o artista nessa situação? Qual o seu lugar?
É nossa opinião que os bens culturais não são propriedade ou massa
de manobra para politicagem. Não é um purismo que propomos, é uma garantia da legitimidade e autonomia não apenas da cultura
mas de seu produtor – a manifestação (autoria) popular, advinda de qualquer
classe social . Vincular os bens culturais com a corrupção política e o
mercantilismo gera o monopólio do que
não poderia ser monopolizado: a livre circulação do obra e seu artista, compromissado
com sua arte, sua visão de si mesmo e do mundo que o cerca. Nem a Arte, nem o
Fazer Cultural nem o Artista devem ser ferramentas de uma classe que tudo faz
para tornar-se absoluta e perpetuar-se no poder. Essa situação extingue a possibilidade da diversidade
cultural, silenciando o legítimo criador e sua criatividade, bem como a sua
liberdade em usar sua voz, sons, palavras, cores e linhas, massas, corpo,
intuições e emoções, de forma autêntica, sem manipulações, sem a preocupação de
produzir obras que agradem ao seleto grupo daqueles que, por dever
constitucional, deveriam difundir a Cultura/Arte de forma democrática. A
corrupção e o mercantilismo (que hoje se apresenta no pomposo termo inglês “
marketing” ) sempre compromete a alteridade, em qualquer âmbito. Isso porque o supra
mencionado poder se comporta como o reizinho mandão da fábula e está pronto
para silenciar o discordante, naquilo em que sua produção difira de seus pontos
programáticos ou mesmo quando deseja privilegiar seus escolhidos que obviamente
estão conformes à uma visão particularista. A censura, agora, se apresenta de
forma insidiosa e sutil, disfarçada em “critérios de avaliação”, mas é o mesmo
silêncio imposto pelas ditaduras. E pelos mesmos motivos: capital, controle,
poder.
Não podemos, porém, incorrer em outro extremo, ou seja, deixar a
produção cultural nas mãos do mercado e apenas para esse fim. Isso também
escraviza o artista, artesão, produtor cultural, que se vê nas mãos impiedosas
do consumismo alienado que torna a arte/fazer cultural tão somente mercadoria,
alienada do princípio de que essa produção emerge da intuição profunda -como
nos diz Ferreira Gullar- seja do artista
popular ou do erudito, por conta de uma necessidade interior, uma necessidade
que busca a expressão em obras e na matéria e nos sons, ou no corpo para
corporificar essa emoção, por vezes frágil e fugaz, quando não é um insight de uma manifestação do sublime.
Pensamos que as obras culturais dizem respeito a um contexto
espaço-temporal, nem que essa obra represente uma antítese a esse contexto. O
seu criador as produz para sobreviver ao seu tempo. Um artista, na acepção do
termo, deixa marcas e mensagens, mesmo que afirme não ser esta sua pretensão. A
prática ( infelizmente comum) de cercear a produção cultural pela invisível
censura do privilégio político, vai esmagando a cultura e seu fazer ou seja, a
arte em qualquer das suas manifestações.
A realidade é que as leis de incentivo cultural não estão ao acesso de todos,
o que manda por ralo abaixo o projeto de Cidadania Cultural e nos fazem pensar
que tal é, na melhor das hipóteses, uma Utopia. Na pior... bem, uma ação
política que nada mas é do que “Panis et Circenses” – Pão e Circo. No caso, a
cultura vira o circo, no mau sentido.
Os bens culturais não dão em árvores, embora o artista
contemporâneo possa usar maçãs para sua obra de instalação. Mas todos os artistas precisam ( ou
deveriam) ter maçãs para se alimentar...
Os bens culturais estão imbricados no fazer-se constante e contínuo. O artista, o criador, de
uma maneira ou outra deveria ser protegido, ou deveria ter condições de se
proteger contra a maré extremamente corporativista. É natural a
condição de competição em nossa sociedade capitalista, porém o corporativismo
não suporta a manifestação daquele que quer dispor de seu talento e sua
expressão fora da ditadura que serve a interesses comerciais e/ou políticos. E
por esse e tanto outros que não se curvam ao jogo de interesses, permanecem à margem dos circuitos culturais oficiais.
Nessa marginalização, há um dado positivo que é a liberdade. Embora
seja parcial, alguma liberdade é melhor que nenhuma. Porém precisamos ampliar a
maneira de veiculação dos bens culturais através de uma valorização intensiva
de inserção, ou reinserção, do artista e sua obra na sociedade, fazendo com que
o artista seja valorizado pela sua produção e talento, tornando-se alguém que possa
a desenvolver sua visão de mundo e da sociedade em que vive e trabalha.
Leis
como a lei Rouanet, ainda
não são plenamente acessíveis. Infelizmente, há uma minoria privilegiada ( e
nem sempre pelo talento) que está
abocanhando as verbas governamentais, como é o caso, de forma injusta.
Talvez digam, nosso pensamento, sim, seja utópico. Contudo,
a proposta de Cidadania Cultural não foi nossa. Aliás, com ela concordamos
plenamente. Desde que seja aplicada realmente e não se preste a palanques e
comícios.
10/12/2012
PRÉ JULGAMENTO
Yndiara Macedo
Ainda
outro dia eu comentava sobre o sensacionalismo em cima da morte da menina
indiana estuprada na véspera do Ano Novo. Não sou vidente nem nada, mas agora
surge o público linchamento da atriz Zezé Polessa.
Segundo
um colunista do jornal carioca “O Dia” a atriz teria humilhado um motorista de táxi idoso que errara o endereço do Projac e
causara o atraso da atriz. Em decorrência dos insultos, o motorista veio a
falecer de infarto (http://blogs.odia.ig.com.br/leodias/2013/01/16/ministerio-publico-vai-indiciar-zeze-polessa-com-base-no-estatuto-do-idoso/.
)
Tomei conhecimento disso através
de extensa e intensa veiculação no “Facebook”. Há muitos compartilhamentos
acerca dessa notícia ( todos variações do mesmo tema). Em todos, a atriz já é
tida como assassina. O júri popular já
julgou e condenou a atriz, com sentença transitada em julgada e sem direito a
recurso.
O
que mais me chamou a atenção nessa celeuma - além do sensacionalismo,
manipulação da mídia, e veiculação distorcida de fatos como se fosse informação
– foi a total falta de senso crítico ( para não falar em senso de justiça ) de
um expressivo número de pessoas que se apropriou de uma fofoca e tornou-a um fato. O Jornal “O Dia” é conhecido pelo teor
sensacionalista e a coluna em questão veicula fofocas sobre astros e estrelas,
de preferência Globais. Como era de se esperar, muito infelizmente, a “notícia”
sobre a morte de um taxista idoso causada por uma atriz da Globo incendiou as
redes sociais ( “Facebook” e “Twitter”, principalmente). Os internautas
divulgam e compartilham a fofoca tratando-a como informação, sem se preocuparem
em parar para pensar e lembrar que qualquer moeda tem dois lados, que não
podemos tomar apenas uma versão como verdadeira.
Não
sou fã de Zezé Polessa, tampouco sua defensora. Ela certamente conta com
advogados para representá-la. Na
verdade, eu já nem me assusto com esse tipo de coisa, cada vez mais
corriqueira, mas me incomoda ver o quanto o nível de senso crítico está
diminuindo hoje em dia. É preocupante,
inclusive, porque a velocidade da comunicação hoje é cada vez mais rápida. Ou
seja, tem cada vez mais bobagem, mais nonsense, mais atrocidade, mais boataria,
inverdades, distorções e inversões que podem ser divulgadas em “trocentos” gigabytes. Há coisas boas também, mas se passássemos um
filtro para estupidez e futilidade, garanto que ia sobrar bem pouca coisa no
“Face” por exemplo.
Antes que me crucifiquem ou me pendurem pelos
polegares, esfolada viva, sobre um formigueiro, deixo claro que sou usuária de
redes sociais, nada tenho contra o progresso e os meios de comunicação. O meu
ponto sempre foi e continua sendo a batalha por mais conscientização, mais senso
crítico. Menos alienação. Tomemos o “Caso Zezé Polessa”. Segundo notícias em
diversos sites na internet, o Ministério Público do Rio de Janeiro abriu uma
investigação sobre o caso. Olhem só: trata-se de uma investigação e não
de uma sentença. Não sou Juíza nem Promotora de Justiça, como está se sentindo
uma bela porcentagem de internautas , colunistas e jornalistas. O meu bom
senso, entretanto, me avisa que 1) Até
agora só temos a versão do colunista do
dia e boatos de que até colegas da atriz ficaram indignados com seu “ assédio
moral” contra o motorista 2) Não chegou
a conhecimento público de que tenha havido qualquer testemunha da agressão da
atriz ao idoso, consta apenas que ele passou mal após deixar a atriz no Projac
e, no hospital, teria contado que fora humilhado mas não queria registrar
ocorrência por medo de perder o emprego. A quem o motorista falou isso, não se
sabe, não vi nenhuma declaração de testemunhas a esse respeito e, antes de
escrever este texto, eu realizei diversas pesquisas. Se algum leitor encontrou
informações de testemunhas do caso, que me desculpem. E me informem. As
postagens no “Facebook” também não dão conta de outra declaração que não a que
foi publicada na coluna do jornal carioca. Há uma declaração da filha do
taxista afirmando que o pai era cardiopata e que naquele dia já não se sentia
bem ao sair para trabalhar. A moça teria dito, também, que acha que a agressão
verbal da atriz contribuiu para a morte de seu pai.
Resumindo:
no que diz respeito ao que está na mídia ( redes sociais incluídas)
aparentemente não há como avaliar o ocorrido muito menos condenar a atriz.
Ninguém parou para pensar na veracidade do que lia. Assumiu-se como vítima o
motorista de taxi ( idoso, em condição social menos favorecida do que um
“Global”) e como vilã a atriz ( mais favorecida economicamente, estrela de
famosa rede de televisão). Alguém estava
dentro do táxi e presenciou a humilhação? Ninguém sabe, ninguém viu. Ainda
assim, o linchamento da atriz continua. Volto a dizer que não sou fã de
Polessa. Não acompanho sua carreira nem qualquer notícia sobre ela. Minha
opinião estritamente pessoal é
que é possível que esse episódio lamentável tenha ocorrido. Como postei na
minha página no “Facebook”, muitas celebridades ( não apenas televisos ou
artistas, mas os “poderosos” em geral)
esquecem que, perdoem a comparação, no banheiro é tudo igual pra todo mundo e que
o corpo vai apodrecer debaixo da terra, salvo se incinerado. Humildade não ocupa espaço, mas para algumas
pessoas ela é grande demais para acomodar no ego. Minha opinião, contudo, não representa os
fatos e eu nem ninguém podemos afirmar nada sem evidências. Só que ninguém costuma
parar para pensar nisso. Vamos introjetando, engolindo sem mastigar o que
certos meios de comunicação nos empurram. Depois vomitamos esse bolo mal
digerido, colaborando com desmedidos sensacionalismos. Penso que por trás de uma calúnia ou de uma
difamação, alguém sempre está buscando uma vantagem que nem sempre é
financeira. Pode ser política, emocional, ou, no caso das mídias, ibope,
audiência, aumento de notoriedade e, claro, de vendas , o que nos leva de volta
ao consumismo voraz e desenfreado de tudo.
Isso me remete ao horrível caso da “Escola Base”, aquela escolinha
infantil cujos proprietários e funcionários foram “denunciados” por um programa
de televisão por pedofilia e outras atrocidades contra crianças. Na Justiça,
foram todos inocentados, pois não havia qualquer veracidade, prova ou
fundamento nas acusações. Infelizmente, o veneno da mídia já contaminara uma
massaroca de alienados que se dizem cidadãos.
Depredaram a escola, perseguiram e constrangeram os “pedófilos” que, como
se provou, eram inocentes. Alguém ainda se lembra disso ou “passou”? Passou
para quem não foi preso, publicamente ofendido, apedrejado, caluniado, perdeu
emprego e toda uma vida. (http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/55481/passados+18+anos+professora+da+escola+base+ainda+nao+sabe+quando+vai+receber+indenizacao.shtml
)
Finalizo
com uma opinião, que se conselho fosse bom eu estava vendendo: da próxima vez, antes de espalhar uma
notícia, seja nas redes sociais, jornais, televisões, seja contar ao vizinho,
verifique a sua procedência e pare para pensar e analisar o que leu, viu ou
ouviu. No ensejo: quantas vezes será que fomos realmente humildes esta semana?
Será que cumprimentamos e agradecemos com um sorriso o motorista de táxi, de
ônibus, o servente no nosso emprego, o varredor de rua, o caixa do
supermercado? Vou confessar: às vezes eu
esqueço.
NOTÍCIAS SENSACIONAIS
Yndiara Macedo
Sensacional:
adj. Relativo a sensação, que produz
grande sensação; extraordinário, genial, surpreendente: uma novidade
sensacional. / Fam. Maravilhoso, espetacular: uma loura sensacional.
Sensacionalismo: s.m. Característica ou particularidade de
sensacional. Interesse ou procura pelo sensacional. Utilização ou resultado da busca por
assuntos sensacionais cuja repercussão tende a fomentar escândalos, chocar uma
sociedade, sem que tais assuntos sejam verdadeiros Filosofia. Fundamento ou
teoria cujas ideias são provenientes, exclusivamente, das sensações ou das
percepções sensoriais.
( Definições do Dicionário Aurélio)
Poucos
dias antes do fim de 2012, uma jovem foi brutalmente estuprada e ferida em um
ônibus em Nova Déli, Índia. O fato gerou comoção internacional e continua
ganhando espaço na mídia.
Sem
dúvida alguma, é uma notícia impactante, horrível e que merece o destaque que
lhe tem sido dado. Entretanto, o que tenho observado nos noticiários em qualquer meio ( televisão,
jornal, internet etc) é que o tom ora revoltoso, ora informativo,
dependendo do veiculador da notícia, está longe da isenção jornalística ou
mesmo do caráter de denúncia de que alguns meios tentam se apropriar. A pura verdade é uma só: o único aspecto
explorado pela mídia é o sensacionalismo.
Muito embora encontremos algumas esparsas ( e parcas) informações sobre
os fatos e suas consequências, o que se repete “ad nauseam” são os detalhes
sórdidos sobre a forma que a jovem indiana foi estuprada e seviciada,
destacando-se que foram seis estupradores.
O
que observo é que o interesse da mídia não é chamar atenção ou despertar a
consciência acerca desse tipo de monstruosidade, das péssimas condições de
segurança me que vivemos, da situação das mulheres na índia e em muitos países
( inclusive o nosso). Os desdobramentos em torno desses temas são efeitos
colaterais do sensacionalismo. Efeitos bem vindos, é claro, mas em breve alguma
outra notícia sensacional, que pode nem ser hedionda, mas curiosa, científica
ou cômica, ocupará o noticiário.
Há
poucos dias, deparei-me com uma brilhante palestra sobre dependência cultural,
proferida pelo jornalista e escritor Jorge Cunha Lima (http://www.cpflcultura.com.br/2008/12/24/a-dependencia-cultural/) e gravada
para o programa Café Filosófico, da TV Cultura. Dentre outros tópicos relevantes
ao tema e muito bem desenvolvidos, Cunha Lima destacou que, segundo sua
observação, o produto da televisão brasileira não é mais o programa em si, mas
a audiência. Referida palestra foi gravada em 2007. Penso que de lá pra cá
pouca coisa mudou, aliás, acentuou-se e não apenas no meio televisivo, mas em
qualquer meio. Obviamente, as emissoras de televisão são “campeãs de audiência”
nos quesitos morbidez, baixaria e sensacionalismo, disfarçando-os entretenimento
ou, pior, de denúncia social. A denúncia
existe, mas, como citei acima, é efeito colateral. Assim que a notícia
veiculada começa a arrefecer, logo aparece outro fato sensacional para saciar o
apetite mórbido e insensato de uma massa com nenhum ou muito pouco senso
crítico. Dessa forma, vai caindo no esquecimento todo o clamor suscitado pela
mídia em torno deste ou daquele fato. Quem ainda fala na pobre Isabela
Nardoni? O caso da moça assassinada pelo
goleiro Bruno ainda ganha espaço no noticiário porque o indiciado jogava em famoso
clube carioca e isso dá audiência. Aliás, como é mesmo o nome da moça
assassinada? Se o assassino fosse um
jogador de um clube medíocre no Piauí ou um pedreiro desconhecido do Acre,
talvez sequer houvesse clamor público, porque nem haveria divulgação do caso.
Quantas mulheres e crianças são estupradas, machucadas, mortas todos os dias,
em diversos pontos do planeta? O caso
Nardoni, por exemplo, foi chocante e tenebroso, porém, não se trata de caso
isolado. Quem trabalha nas Varas Criminais de qualquer cidade brasileira já
deve ter se defrontado com casos mais hediondos e não divulgados, pois não
despertariam o necessário “auê” que gera a audiência, que atrai leitores, que
divulga e destaca os meios de comunicação. Isabela Nardoni, por exemplo, era de
família abastada, pais com nível superior, avô advogado. O empresário japonês assassinado e retalhado
pela mulher era pessoa de posição financeira relevante e por isso com destaque
social. Mas não nos enganemos, tem coisa muito pior ocorrendo por aí, anonimamente,
apenas porque não interessa à mídia divulgar.
É óbvio que não é possível noticiar e
saber de absolutamente todo e cada movimento neste planeta. O que me desperta
atenção e que desejo ressaltar é a necessidade de não tomarmos por denúncia a sede por audiência e a
criação de uma irreflexiva cultura da violência. A mídia, qualquer que seja,
não está prestando um serviço social, muito menos denunciando desiguladades,
atrocidades, conspirações. O culto e a cultura da violência não leva á reflexão
do porque essas coisas horríveis acontecem. Não encontrei nenhum debate sobre o
que levou seis indivíduos a agirem tão brutalmente contra um ser humano. Não
que haja desculpas para a monstruosidade, mas ninguém reflete sobre de onde ela
surge, como se alimenta, porque aumenta. Todo mundo quer ver o enforcamento dos
assassinos, ou seja, mais violência. Ninguém se pergunta o porquê de nada e vai
crescendo um mercado da violência extremamente expressivo, sempre disfarçado de
notícia ou denunciação. A mídia presta serviço a si mesma e é com isso que
precisamos nos cuidar. O antídoto é simples: menos BBBs, Fazendas,
compartilhamento de inutilidades no Facebook, menos pancadão, baixaria, dancinhas
de bundas rebolantes, palavrões, consumismo desenfreado. Mais senso crítico,
mais leitura, e não apenas juntar palavrinhas, mas desvendar a escrita. E por
leitura entendamos também a compreensão da mensagem, seja ela verbal ou não
verbal. Precisamos com urgência descobrir as entrelinhas, ler o que não está
escrito, ouvir o que não foi dito, ver o que não está a olho nu, como queria
Paul Klee.
Quem
sabe com mais senso crítico, com menos estupidez e alienação (que é morte
cerebral voluntária), diminuam-se os casos de violência, estupros, assaltos,
miséria, corrupção. Quem sabe vejamos menos casos como o da pobre jovem indiana
e possamos ver menos programas que pingam sangue e mais entrevistas como a do
Cunha Lima, na Cultura. Afinal, o senso crítico é ferramenta essencial da cidadania. Sem
cidadania, não há civilização que se sustente.
05/01/2013
DEFEITO DE FÁBRICA
Yndiara Macedo
Foi esta a imagem cuja postagem deu origem a esta crônica |
O “Facebook” anda me dando linha.
Ou dando gás. No meio de tanto besteirol, acabo encontrando pérolas que dão o
que pensar. Uma caríssima amiga, Dani Facholli, compartilhou um engraçado
cartum: diversas mulheres, todas idênticas, bonitas, jovens, o cabelo
irrepreensivelmente penteado ( e necessariamente liso) coloridas em tons róseos, com um enorme
código de barras na testa. Atrever-me-ia a dizer que são loiras, não pela piada
preconceituosa, mas porque ainda hoje o padrão de princesinha é o nórdico
europeu. Cada uma das multigêmeas
segurava um acessório de maquiagem. No meio delas, bem à frente, em preto e
branco, há uma jovem trajada casualmente, os cabelos escuros em desalinho. Ela
não é feia, mas obviamente se destaca pelo visual despojado, sem compromisso.
Ela lê um livro. Na testa, em vez de código de barras, há um papel, afixado com
fita adesiva onde lê-se: “defeito de fábrica”. Achei fenomenal! Além de bem
humorado, adorei a mensagem. Postei meu comentário para a Dani e fui ler as
outras postagens. Para meu espanto, algumas pessoas criticaram o cartum. De forma geral, as (os) reclamantes diziam
que aquilo era preconceito contra a beleza e vaidade femininas. Que nem toda
mulher bonita é burra e nem toda feia é inteligente. Concordo integralmente com
o postulado, mas não em relação ao cartum. Eu fiz uma leitura totalmente
diferente: no meu olhar, o enfoque não reside na questão da beleza X
inteligência. Interpretei a mensagem
como uma crítica aos “modismos”, ao escravismo dos padrões do que é belo, e, o
principal, crítica à futilidade X consistência. Este, para mim, é o ponto
central. E parabéns ao cartunista, infelizmente não há assinatura no desenho
para eu poder creditar neste texto.
Não há mal algum em ser
vaidosa(o). Acho que é uma virtude se cuidar. Pessoalmente, sou extremamente
vaidosa. Adoro perfumes, tenho uma bela
coleção de paletas e pincéis para maquiagem, vivo lutando contra o peso,
tentando buscar a boa forma. Invejo Angelina Jolie, Scarlet Johansson, Kate
Beckinsale, Luiza Brunet (para mim, eterna musa). Não vivemos só de pensar. O nosso cérebro
habita acima de um corpo. Mas aí é que está: o corpinho tem que obedecer ao
cérebro e não à coletividade, à moda, ao consumismo. Embora eu admire e inveje a boa forma ( e os
modelitos Givenchy) da Angelina, Scarlett ou da Luíza, eu não quero me tornar
nenhuma delas, mesmo porque isso é impossível. Somos únicos. Tampouco vou
contrair uma dívida no banco ou assaltar uma loja na 5th Avenue ( aqui em São Paulo, talvez a Daslu, mas ...
nhé... 5h Avenue é melhor.) para ter marcas famosas. Francamente, além de ser
fútil e potencialmente perigoso à minha vida, eu nem teria onde usar um modelo
Yves Saint Laurent com uma bolsa Gucci e sapatos Prada. A primeira dificuldade
seria em *caber* em um vestido que é
feito para mulheres com 1m70 e 50 quilos. A segunda seria ter coragem de sair à
rua com peças tão valiosas para acabar assaltada. Ou passar ridículo. Alguém se
imagina indo para o supermercado num lamê da Dior, de ônibus?
Todo mundo sonha com coisas boas,
coisas chiques. Imagino que uma criança da Somália deve achar que comer todo
dia é o “crème de la crème”, por exemplo. O pobre do sem teto que dorme na
frente do Fórum aqui da cidade deve achar um luxo dormir numa cama após um
banho de – veja só – água quente.
Exageros à parte, todos temos sonhos de consumo. O meu é uma viagem à
Europa, de onde eu posso trazer um kit completo da Lancôme, à preço justo. O do meu marido deve ser uma coleção de
quadros do Miró; telas feitas à mão, sob encomenda, pinceis e tintas da melhor
qualidade. Tem gente que sonha com uma Ferrari e por aí vai. Isso não é pecado
e até faz bem. O mal é quando esses sonhos se tornam o alvo e o motor de uma
obsessão, de uma compulsão que nada detém, nem a ética. Aí surgem os corruptos,
que já esqueceram o que é ética. Moral? O que é isso? Quando começamos a
substituir o essencial pelo conspícuo, aí a coisa fede, ainda que seja a
perfume francês. É aí que surgem as
dívidas ou, no pior caso, a ética e a moral saltam pela janela e começamos a
fazer qualquer coisa pelo ter e pelo parecer, em vez de simplesmente ser.
O
cartum mencionado me evoca isso, mas à frente há a questão da padronização (
que não deixa de ser ferramenta do consumismo) e da futilidade, em especial a
feminina. A meu ver, o que o desenho ataca não é a vaidade, mas o seu exagero e
o deslocamento que causa uma mulher que não siga o padrão a ponto de ser
considerada um defeito de fábrica. Não, o mundo não mudou. As sufragistas e feministas certamente
conseguiram nos tirar da Idade de Pedra. Já podemos votar, trabalhar, até
ganhar mais que os homens ( dependendo do cargo e do empregador). O problema é
que o pensamento social ainda me parece Neandertal. Sob a máscara da “liberdade
sexual” subjaz uma ferida escondida. Tem muita, muita moderninha por aí que se
gaba de ter beijado 16 por noite e de poder fazer sexo com qualquer um e a
qualquer hora, mas que inveja a amiga bem casada, que pode até não fazer sexo
todo dia, mas dorme abraçada com o seu amado e, quando vão pra cama, fazem amor
junto com sexo. As amigas mal casadas são a desculpa perfeita para a moderna –
será que eu devia dizer mal comida? Não sei. –
anunciar aos quatro ventos o quanto é feliz por estar livre, leve e
solta. Livre? Onde, se quando ela vai pra balada bate a preocupação com o
vestido, o sapato, a maquiagem, o perfume, o penteado, a cor da unha. Leve?
Como, se o peso da concorrência que ela vai encontrar a deixa à beira de um
ataque de nervos que a leva a explodir o cartão de crédito no salão, na
massagista, no pilates, no cirurgião plástico? Solta? De que forma, se a prisão
a um padrão de beleza cada vez mais rigoroso a leva a loucuras como serrar
costelas para diminuir a cintura, injetar silicone para turbinar os seios ou
fazer cirurgia para retirar o que o padrão diz que é excesso. A última invenção da “moda” é extrair o dedo
mindinho do pé para diminuir o tamanho e tornar o pé mais “harmonioso”. Eu acho
que essa última deve ser manobra de alguma marca de calçados.
Enquanto
isso, tem aquelas que vem com defeito de fábrica. Que acham a Angelina Jolie
linda, mas não caçam o Brad Pitt na balada e preferem investir na tese de
mestrado em vez da nova coleção da Chanel. E óbvio que isso é preocupante e
visto como um defeito. Essas mulheres não se veem como acessórios masculinos, não
se sentem na obrigação de trocar de cor de cabelo para parecer com a ninfeta
“globete” do momento, questionam quando o cara enrola, quando mente, reclamam
se o futebol, a cerveja e a farra deixam apenas 10% de tempo pra ela. No
mínimo, ela quer o meio a meio. E quer o direito de sair com as suas amigas pra
se divertir enquanto ele enche a cara com os amigos. Ela adora os peitorais e o
“tanquinho” do Thor e do Wolverine da
mesma forma que ele fica secando, sem discrição, a bunda das gostosas que
anunciam sua marca de cerveja favorita.
Ela não exige casamento e filhos, mas quer compromisso, companheirismo.
Ela não joga o cabelo pro lado e vai retocar o batom quando o namorado começa a
falar sobre a crise econômica ou sobre a última publicação da Cia das Letras.
Isso se ela der sorte de encontrar um homem antenado. Se for um resquício de
Conan- o-Bárbaro o cara periga levar uma cortada ou gelada federal ou ficar de
pé, horas, tentando decifrar a última frase que ela disse, porque desconhece o
que é sarcasmo.
Em suma: esse tipo perigoso de
mulher pensante dá trabalho. Não dá pra manipular, pra cornear, pra enrolar. Não
dá pra dizer “Eu fui pra cama com ela, mas é você que eu amo”. Ainda que a dama
em questão (elas são todas damas. Não conheço uma mulher verdadeiramente
inteligente que goste de descer barraco) esteja seriamente apaixonada e
comprometida, chega uma hora em que o afrodisíaco da paixão começa a perder o
efeito e Miss Defeito põe saia justa no gajo em questão: “Por que a gente nunca
sai sexta nem sábado à noite?” “Porque o
jogo do timão é mais importante que o meu aniversário?” “Como assim, lavar suas cuecas? Você não meu
filho. Nem que fosse.” “Ué, você não ia
pra cervejada com o pessoal da facul? Eu estou com as meninas aqui na praia.” “
Você não disse que hoje ia visitar a sua tia doente? Como é que a gente se
encontra aqui na festinha do Tito?” “Desculpa, querido, mas eu não vou pagar a
conta sozinha, nem pôr gasolina no seu carro.”
O cara, que a essa altura está com os neurônios derretendo ( Eles não
tem mais que a gente? Uns a menos não vão fazer diferença), não compreende
porque aquela mulher não é igual as outras, porque faz tanta pergunta, porque
insiste em conversar com ele, em fazer faculdade, discutir política, a relação
do dois. Ela faz piadas que ele e seus amigos do bar não entendem. Só pode ser
defeito de fábrica. Ele cogita ligar para o Procon, mas desiste e termina o
relacionamento ou some que nem o desenho do Leão da Montanha. Saída estratégica
pela direita!
Eu vim com defeito de fábrica.
Demorou para eu entender que isso é bom, pois tudo que o ser humano tenta é
viver em grupo e ser aceito por ele. Hoje agradeço a Deus que me mandou da
fábrica com esse “vício irreparável”, pois inteligência não tem reparo. Não é
possível ficar burro. Ainda bem que eu não tenho que lavar, no tanque, cueca
nem macacão sujo de graxa de marido que está assistindo ao Faustão, estirado no
sofá, criticando minha celulite em comparação com as dançarinas, ostentando uma
indecente barriga de chope e macarrão com molho que ele derramou pelo chão que
ia sobrar pra eu limpar. Também agradeço
por não ser a amante eterna do executivo que jura que vai largar a mulher, mas
precisa de um tempo, bem como não ser a esposa desse mesmo homem, fingindo não
ver que ele chega cada vez mais tarde durante a semana, não sentir o perfume
diferente nas camisas de seda, afinal, ele paga as contas do meu cartão de
crédito, como eu vou viver sem a grana dele?
Por sorte, também existem homens
com defeito de fábrica. O filósofo
Roberto Carlos acaba de decantá-lo em “ Esse cara sou eu”. É o homem que liga
no dia seguinte, que se preocupa se você some, nem que seja por um diazinho só.
O homem que lhe pinta quadros e lhe faz poesias. Se não é artista, lhe manda
poesias que emprestou do Drummond, do Quintana, Neruda. Dá flores e presentes
fora de hora, sabe o que você gosta, respeita sua opinião, ouve o que você fala,
interage, não tem ciúme das suas amigas, como você não tem dos amigos dele,
apoia suas decisões, alerta quando você vai fazer bobagem, estimula seus
projetos, vibra com o seu sucesso, para o total assombro dos machos bem
fabricados, que não compreendem de que planeta veio tal otário. Sim, também há homens com defeito de fábrica.
Estão por aí. Tenham fé. Eu casei com um deles.
Yndiara Macedo – 17/01/2013
A MORTE E O FUNCIONALISMO PÚBLICO
Yndiara Macedo
(1º Colocado no Concurso J.I. de Literatura - 2008 - Finalista e Vencedor do MAPA CULTURAL PAULISTA - 2010 )
O Zé morreu
numa quarta-feira. Caiu morto, em cima de uma pilha de papéis, na repartição
pública em que trabalhava, fazia mais de 25 anos.
De início,
ninguém reparou. Todos resmungavam contra a perda salarial, as péssimas
condições de trabalho, a corrupção na política. Todo mundo estava concentrado
nos carimbos, na burocracia às suas mesas, com medo da possível aprovação da
perda de estabilidade no funcionalismo
público. Ninguém notou o Zé caído, sem respirar. Só uma hora depois é que o
chefe da seção percebeu o funcionário sobre a pilha de documentos. Devido á
queda, muitas se espalharam pelo chão.
O mau humor do
chefe já era notório. Naquele dia estava pior porque seu time perdera o
campeonato. Da sua mesa, no fundo da sala, ele resmungou, bem alto, contra o
“relaxo” e a “vagabundagem” de certos
funcionários.
O colega que
sentava ao lado do Zé, com medo do mau humor do chefe, mandou o morto levantar,
antes que sobrasse para todo mundo. Aquilo lá era hora de dormir? As duas
funcionárias que ocupavam as mesas de trás começaram a cochichar sobre a cara
de pau do “folgado”, com olhares e
piadinhas maldosas.
A maledicência
se alastrou como uma doença, contagiando a sala, e o Zé, funcionário exemplar
há quase 30 anos, que nunca entrara atrasado, virou o vagabundo que cochilava
em serviço.
Irritado, o
chefe levantou-se e foi até o Zé, vociferando ameaças de sindicância,
sacudindo- o e ordenando-lhe que se levantasse. O morto rolou para o chão, os
olhos esbugalhados, a boca entreaberta.
Houve um
instante de mudez na repartição. Quem rompeu o silêncio foi o estagiário que
perguntou o que iam fazer com o corpo. O chefe fitou o rapaz com ódio. E ele lá
ia saber o que fazer? Aquilo não constava nas normas do serviço.
O corpo do Zé
foi arrastado e trancado no almoxarifado. O chefe incumbiu um funcionário de
ligar para os bombeiros e avisar a viúva,
depois voltou a trabalhar porque o serviço não pode parar. O tal funcionário
incumbiu outro colega. O outro colega incumbiu outro, que incumbiu outro que
finalmente passou a tarefa para o estagiário. Quando o rapaz ia pegar o
telefone, uma das funcionárias gritou-lhe exasperada que ele tinha que passar
um fax urgente ou perderia o emprego.
O defunto foi
esquecido no almoxarifado. Só lembraram no dia seguinte, quando o corpo começou
a feder. Ninguém na repartição foi punido. Culparam o estagiário e o rapaz, que
era terceirizado, foi demitido.
O Zé,
funcionário público morto em serviço, foi sepultado na sexta-feira e o alto
escalão avisou que o dia não seria abonado.
Só o
estagiário foi ao enterro.
FALHA NO SISTEMA
Yndiara Macedo
( 2º Colocado no Consurso JI de Literatura - 2012 )
Foi no sétimo dia útil que tudo começou.
Aparecida aguardava a vez na fila do banco. Era procuradora da mãe doente. Doença
rara que escolhera a velhice para se manifestar. Metade da aposentadoria ficava
na farmácia. Aparecida introduziu o cartão no caixa eletrônico e em vez do
benefício, recebeu a novidade: a conta estava zerada. Aparecida repetiu o
procedimento e a tela mostrou o mesmo saldo: 0,00.
A
mulher entrou no banco, foi levada ao “gerente pessoal”. Aguardou ansiosa, só
para descobrir que se tratava de um funcionário que resolvia problemas grandes ganhando
um salário pequeno. O homem consultou extratos, deu telefonemas. “É falha do
sistema, senhora, mas não do nosso. O problema é na firma em que sua mãe trabalhava.”
A firma ficava longe. Aparecida tomou três
ônibus. Ao chegar, procurou pelo R.H., mas fechara às dezesseis horas. No dia
seguinte, Aparecida voltou, cedinho. Madrugou inutilmente, pois o setor abria
às dez. Demorou a ser atendida. Explicou o ocorrido: “Não depositaram a
aposentadoria da minha mãe, o banco disse que é falha no sistema.” O
funcionário do R.H. foi categórico: “Certamente foi falha do sistema, mas não
do nosso. A senhora tem que procurar o Financeiro.” “Em que andar fica?” “No
quinto, mas hoje ele só abre de manhã e já é meio dia. Só na segunda feira”.
O
fim de semana foi opressivo. Aparecida mentia à mãe para não piorar sua
debilitada saúde. A medicação dela chegava ao fim e não havia remédio contra a
burocracia. Na segunda, Aparecida foi ao Setor Financeiro onde lhe disseram: “Se
é falha do sistema, foi na Tesouraria.”. Aparecida implorou. “Pelo amor de
Deus, me digam que eles atendem hoje!” Atenderam. E foram taxativos. “O sistema
da Previdência é um caos. O processo emperrou lá.”
Na
Previdência, negaram a falha no sistema: “Os documentos já foram enviados à firma.
Volte lá.” Aparecida voltou à firma e lhe avisaram: “Já recebemos a
documentação, mas, entenda, o prazo para o trâmite é de cinco dias úteis.” “Minha
mãe está doente! Por favor, não há outro meio?” Ela suplicou. “Nós fazemos tudo
de acordo com o sistema, senhora. Procure um posto de saúde”.
Aparecida
foi ao posto de saúde de seu bairro. Um atendente consultou dois computadores e
seis funcionários para informar: “Nós até temos o remédio, mas só chega em dez
dias.” “Rapaz, minha mãe vai morrer. Ela está sem dinheiro e sem remédio! O que
posso fazer?!” “É o sistema, senhora. Procure um advogado.”
A
mulher entrou no primeiro escritório de advocacia que encontrou. Estava quase tão
macilenta quanto à mãe doente e que tomava aspirina, sem saber que a medicação
acabara. O advogado informou: “Cabe uma liminar. Leva uns cinco dias.” Aparecida
voltou para casa, anestesiada. O sistema parecia se mover a cada cinco ou dez
dias, nada podia fazer.
No
sétimo dia após a última solicitação de Aparecida, a aposentadoria foi
depositada, sem correção monetária. Do banco, Aparecida foi direto à funerária,
pagar o enterro da mãe, que falecera dias antes. Na certidão de óbito, constou
como causa mortis: “falha múltipla no
sistema”.
A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR
A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR
A Cleo entra cantando no
cartório. Cumprimenta-nos, sorrindo. Ela é a funcionária da limpeza. Todo dia
passa à mesma hora, recolhendo nossos cestos lotados do lixo do dia: certidões
incorretas, erros de digitação, documentos caducados. Papéis inúteis. A Cleo
vai de mesa em mesa, esvaziando o lixo em grandes sacos pretos. Vai brincando
com todos, faz piada com os cestos mais cheios: “errou muito hoje, hein?” nos
lembra do meio ambiente: “Assim, ‘cês’ tão matando árvore! Quanto papel!”. Vai
embora cantarolando outra canção. Todo dia é o mesmo bom humor.
Enquanto isso, em nossas mesas,
resmungamos contra a falta de sorte: o aumento que não veio, a nota baixa dos
filhos na escola, o cheque especial estourado. Reclamações até jutas, ninguém
está resmungando por nada, mas a Leo me faz lembrar um episódio ocorrido em
Caraguatatuba, no carnaval de 2003.
Era
uma daquelas situações fundo do poço, quando a gente pensa que pra afundar
mais, só cavando. Eu olhava o mar e o mar me olhava de volta, imperturbável.
Uma mulher passou por mim. Uma mendiga, suja, usando camiseta de duas eleições passadas, o cabelo duro de piolho sob um boné ensebado. Arrastava uma vassoura velha e uma sacola plástica onde recolhia latinhas vazias de alumínio.
Uma mulher passou por mim. Uma mendiga, suja, usando camiseta de duas eleições passadas, o cabelo duro de piolho sob um boné ensebado. Arrastava uma vassoura velha e uma sacola plástica onde recolhia latinhas vazias de alumínio.
Ela parou
poucos metros à minha frente, apanhou uma latinha, lavou-a, encheu-a com água
do mar, para depois despejá-la sobre si, refrescando-se. A mulher inspirou profundamente, fitando o
horizonte. Então bateu as mãos no peito e exclamou; “Ê, vida boa!” E se foi,
caminhando sem pressa, arrastando a vassoura e a sacola à beira d’água.
Esse é o tipo de cena que não deixa ninguém em
paz, embora devesse. Aquela maltrapilha, que recolhia latas para poder comer,
fitava um mar diferente do meu. Minhas ondas eram indiferentes. As dela,
sorriam.
Quando
vejo a Cleo cantando e rindo enquanto recolhe o lixo do cartório, lembro da
catadora de latinhas, tão menos mendiga que eu, que nós, que muitos que não
recordam de Jesus ensinando a dar a
César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
A cada dia, o
bom humor da Cleo e o episódio da mendiga me lembram o quanto estamos esquecidos
de dar a Deus o que é de Deus. A sermos mais reconhecidos pela benção da saúde.
Pelo trabalho que porá o pão à mesa. Ou simplesmente pela benção da vida,
porque a residência da vida é a mesma moradia da esperança .
Por isso, a Cleo sorri,
esperançosa e reconhecida. Por isso, a maltrapilha nos supera e ambas nos ultrapassam, menos preocupadas
com o que é de César e mais perto do que é de Deus.
Yndiara Macedo 06/01/2011
ATENDENDO A PEDIDOS
Estou postando aqui alguns contos e crônicas publicados em jornais e alguns premiados em concursos.
terça-feira, 29 de janeiro de 2013
O CONDÃO E O CALDEIRÃO A MULHER ONTEM E HOJE
( Este texto foi apresentado em forma de palestra em 2010 para a Academia Atibaiense de Letras ( Atibaia/SP) e não teria sido possível sem a enorme colaboração do artista plástico e poeta Nestor Lampros )
“O problema subjacente não
são os homens enquanto sexo. A raiz do problema está no sistema social em que o
poder da espada é idealizado — em que homens e mulheres
são ensinados a relacionar a verdadeira masculinidade com a violência e a dominação, e a ver os homens que não combinam com este
ideal como "demasiado indulgentes" ou
"afeminados".” Riane Eisler
Repressão Sexual:
-
Reprimir: v.t. Conter, reter, sopitar: reprimir as lágrimas. / Impedir a ação
de: reprimir os inimigos. / Proibir: reprimir abusos. / Sofrear: reprimir
excessos. / Punir. / Violentar. ( Diconário Aurélio)
Repressão
s.f. Ato ou efeito de reprimir; coibição, refreamento. ( Dic. Aurélio)
. Ato ou efeito de reprimir; coibição, proibição.
2
Conjunto de medidas violentas, tomadas pelo governo, contra abusos ou delitos,
públicos ou particulares. 3 Psicol Processo pelo
qual lembranças e motivos são impedidos de atingir a consciência, continuando,
no entanto, a operar subconscientemente; é conceito fundamental na psicanálise.
( Dic. Michaelis)
Segundo a professora Marilena Chauí, a repressão sexual
tem início com a proibição do incesto, quando sexo deixa de ser natural par
tornar-se um ato cultural. O sexo
natural, onde não havia proibição de relações sexuais entre familiares,
tornou-se um risco para a espécie, pois a prole gerada de casais com afinidade
consanguínea era fraca, doente e as vezes não atingia a idade adulta, não podia
cooperar com o grupo, ou seja, não era um ser produtivo.
Riane Eisler, no livro O Cálice e a Espada (Ed.
Imago/RJ), propõe que as sociedades anciãs (período paleolítico, aproximadamente),
existiam sob um sistema cooperativo entre as pessoas, onde não havia guerra nem
supremacia entre os sexos, mas sim colaboração. As mulheres traziam para a
sociedade o alimento bem como proporcionavam a manutenção da
vida e a fartura, pois só quem dá vida poderia fertilizar a terra. Aos homens
cabia a proteção e segurança ( principalmente de animais ) e o uso da força
física masculina para o trabalho mais pesado.
“Como regra geral,
provavelmente a
linhagem era traçada por parte
da mãe. As mulheres mais velhas ou chefes dos
clãs administravam
a produção e distribuição
dos frutos da terra, que eram
considerados pertencentes a
todos os membros do grupo. Ao lado da posse
comum dos principais meios de produção e a percepção do poder social como
responsabilidade ou administração
para benefício de
todos surgiu o que
parece ter sido uma organização social basicamente cooperativa.
Tanto mulheres quanto homens — às
vezes até mesmo, como em Çatal Hüyük, pessoas de diferentes
grupos raciais trabalhavam em cooperativa em prol do bem comum..
Ali , a força física
masculina superior não era a base para a opressão
social, a guerra organizada ou a concentração da
propriedade privada nas mãos dos homens mais fortes. Tampouco oferecia
ela as bases para
a supremacia dos
machos sobre as fêmeas ou dos valores "masculinos" ' sobre os
"femininos".
Ao contrário, a ideologia prevalente
era ginocêntrica,
ou centrada na mulher, a
deidade representada em forma feminina
Simbolizados pelo Cálice
feminino ou fonte da vida, os poderes geradores,
alimentadores e criativos da natureza —
não os poderes de destruição —
tinham, como já vimos,
o mais elevado valor. Ao mesmo tempo, a função
de sacerdotisas e sacerdotes parecia não ser a de
servir e oferecer sanção religiosa a uma
feroz elite masculina, e sim beneficiar todos os membros da comunidade da mesma forma como chefes
dos clãs administravam
as posses comuns e o
trabalho das terras..” ( Eisler,
Riane. O cálice e a Espada pg 45)”
Ainda segundo
Eisler, a ruptura dessa sociedade cooperativa se deu com o aparecimento de
povos belicosos, invasores. Com eles surge a necessidade da espada, das artes
da guerra e o masculino começa a crescer em detrimento do feminino. Outro fator
apontado por Eisler os invasores possuíam outro esquema cultural. Algumas vezes
simplesmente pilhavam e agrediam, mas muitos deles conquistavam e dominavam
essas sociedades cooperativas que eram basicamente agrárias, voltadas para o
culto a terra e a Grande Mãe, portanto, mais pacíficas.
Sob a dominação
desses povos belicosos, vai desaparecendo o respeito ao feminino e emergindo a
supremacia do masculino, da guerra e mais tarde, do aço.
“Mas permaneceu o termo
indo-europeu. Ele caracteriza uma longa sucessão de invasões do norte asiático e europeu por povos nômades. Governados por poderosos
sacerdotes e guerreiros, eles trouxeram consigo seus
deuses masculinos da guerra e das montanhas. E como os arianos na índia, os hititas e mittani no Crescente Fértil, os luwians em
Anatólia, os kurgos na Europa Oriental, os aqueus e
posteriormente os dórios na Grécia, gradualmente impuseram suas ideologias e modos de
vida sobre as terras e povos que conquistaram.” (Eisler, Riane. O cálice e a Espada
pg46)
A
MULHER ONTEM - A IDADE MÉDIA
Com a instauração as supremacia masculina, tudo que
pertencia ao feminino foi caindo para segundo plano, tornando-se quase
irrelevante em algumas culturas. Entre a maioria dos povos a mulher passou a
ser moeda de troca, sua importância se restringindo à vida doméstica e o
cuidado com os filhos. Os filhos homens eram cedo separados das mulheres para
serem iniciados nas artes masculinas.
A cultura judaico-cristã institui o temor ao feminino.
Através de Eva, a mulher foi proscrita. A Grande Mãe, geradora e provedora, não
mais era associada à terra e a fertilidade e fartura, mas tornou-se a fonte e o símbolo do mal. O feminino,
a partir de então, era de natureza perversa, má, só resgatada através da
santidade pelo serviço religioso ou através do casamento, para o qual e dentro
do qual deveria manter-se casta.
Georges Duby, um dos maiores pesquisadores da era medieval,
fala, em seu Idade Média Idade dos Homens, que o casamento foi instituído como
1) uma forma de manutenção de bens e linhagens 2) Como forma de controle e
abstinência sexual.
A idade Média é misógina, totalmente masculina, com raras
exceções. Entretanto, todas as transgressoras foram direta ou indiretamente
punidas. A simples transgressão à ordem masculina trazia para suas vidas
tormentos e infortúnios. Veja-se o caso de Heloísa, que desafiou a sociedade e
principalmente a Igreja, ao desposar Mestre Pedro Abelardo, filósofo e
professor. Então, aqueles eu ensinavam deveriam ser castos como os clérigos.
Abelardo foi castrado pelo irado tio e tutor de Heloísa que, sem a a virgindade da moça não poderia
mais conseguir um casamento vantajoso.
A virgindade é outra questão discutida por Duby e por Marilena
Chauí:
Hoje mero valor moral ( e
cada vez menos valorada) de início a exigência da virgindade era uma questão
financeira. As classes nobres não queriam repartir bens, portanto, procuravam
restringir a prole, ou não haveria bens suficientes para cada filho, o que
empobreceria a linhagem. Um noiva virgem garantia ao seu futuro esposo a
segurança da inexistência de filhos bastardos que mais tarde eventualmente
viessem a reclamar posses de sua mãe ou entrar em guerra contra seu
marido.
A
mulher era dominada pela força bruta, pela ideologia religiosa e também pela
necessidade de sobrevivência. O conceito de mulher independente é muito, muito
posterior. Na idade média ( e durante muito tempo após ela) não havia como uma
mulher sobreviver sem a família ( ou seja o pai ou tutor) ou sem a Igreja. Ou
ela desposava um homem ou desposava Cristo.
Duby conta o caso da
condessa do Perche ( França – Sec XII) A condessa escreve à Igreja pedindo
conselho, pois está sendo vitima da
brutalidade do marido que, como o Susserano de terras tinha poder de vida e
morte sobre a esposa. Ela indagava quais os deveres da mulher casada e se deveria
dobrar-se aos desejos do marido, perguntando qual é o quanto do debitum ( termo
usado para definir o afeto conjugal) . O abade Adam responde que a alma e o
corpo são de propriedade de Deus. Entretanto, segundo a lei do casamento,
instituída por Deus, o marido está na posse do corpo da mulher como
usufrutuário, mas a alma,. não, a alma pertence apenas a Deus. Ou seja, a
mulher tem dois proprietários: o marido e Deus. E tem que bem servir a ambos.
Deve entregar o copo para o total controle e uso do marido, mas sem concupiscência,
luxúria ou prazer, pois sua alma tem que ser entregue a Deus, mesmo durante o
ato sexual. ( George Duby Idade Média
Idade dos Homens fls 32-33).
A mulher é dado, então dois
papéis:
- o da santidade, associando-a
a virgem – quer pelo casamento religioso, quer pelo casamento carnal que trará
a maternidade.
- o profano/demoníaco, que, de acordo coma
ideologia dominante , era o instinto e índole originais da mulher.
Mulheres estéreis podiam ser dispostas pelo
pai/tutor/marido como melhor eles entendessem. A maioria era entregue ( a
maioria das vezes vendida) ao meretrício ou banida do lar. Esta segunda opção a
levaria, de qualquer jeito, à prostituição ou a morte. Em alguns casos, a filha
estéril, portanto inútil à sociedade, era entregue aos conventos para serem
religiosas.
O
Condão e o Caldeirão
Na literatura, temos
claramente essa divisão de papel, na alegoria das bruxas e fadas/princesas dos
contos de fadas.
As princesas/fadas representam a bondade , a beleza, a pureza
ou seja o bom é belo.
As bruxas são o mal. Portanto são feias, velhas,
corcundas, enfim; o mal é feio.
O simbolismo e alegoria dos
contos de fadas ( riquíssimos, aliás) mostram a mulher como o condão ( a fada,
que é uma representação da Virgem Maria ou dos anjos ) ou o caldeirão ( a
bruxa, o demônio).
Analisemos, entretanto, tais
alegorias: a fada usa de magia, mas uma magia bondosa, é a fada madrinha,
enviada por deus, como um anjo protetor. A fada madrinha vai ajudar a princesa
- também bela e boa e obediente ) a ser resgatada da maldade de uma bruxa ( que
se encontra também na figura da madrasta má) ou de um perseguidor ( no caso do
conto Pele de Asno, o próprio pai incestuoso) . Os poderes da fada são
permitidos Deus e legitimados porque praticam o bem, resgatando o belo do feio,
a ordem da transgressão.
A bruxa é o mal. Os poderes
mágicos da bruxa alteram ( subvertem) a ordem natural das coisas. A bruxa é a
figura das antigas sacerdotisas, do culto a natureza. Agora, em vez da mulher
respeitada e estimada como provedora/curadora, a bruxa é servidora do demônio.
Em verdade a bruxa é a transgressora da ordem do mundo masculino que teme a
mulher porque só ela é capaz de parir, de gerar, de transformar. Tem ligação
estreita com a natureza. Portanto, deve ser proscrita/morta ou inverterá a
ordem instaurada.
O caldeirão fervente da
bruxa, antes era o útero fecundo da mãe, agora transfigurado em perigo, em
destruição. É o temor masculino de ser dominado pelo feminino. Em certas
culturas pagãs eminentemente masculinas havia o medo da vagina dentada: os
homens temiam que no interior da vagina houvessem dentes que mastigassem o
pênis. Tal temor permaneceu na cultura cristã mas de outra forma, mas o medo é
o mesmo, o medo da perda da virilidade pela subversão do poder.
A
MULHER HOJE
E hoje, como anda o feminino? Com certeza tivemos grandes
avanços, desde as sufragistas e o movimento feminista.
Entretanto, até onde chegam esses avanços? Eis algo em
que pensar. Nas culturas Islãmicas, o homem ainda tem poder de vida e morte
sobre a mulher. No Irã e no Iraque, uma mulher estuprada pode ser condenada à morte pois seduziu e tentou o seu estuprador.
Aqui mesmo no Brasil, apesar da Lei Maria Penha, são
inúmeros os casos de abusos e violência contra a mulher, a maioria dentro de
casa.
Na música e em toda a produção cultural ainda somos todos
herdeiros da mentalidade belicosa que trouxe a espada e baniu o cálice. Que
substituiu o útero da mãe pelo caldeirão fervente da bruxa. Eu só permite os poderes
da fada através da varinha de condão, símbolo fálico, portanto masculino.
A propaganda nos diz que só é bonita quem é magra . Só é
gostosa quem tem corpo perfeito. O feminino ainda está subjugado até pelo olhar
masculino. Ainda somos fadas, princesas ou bruxas. Basta ver os comerciais de
cerveja, as múltiplas notícias de mulheres anoréxicas, em especial as jovens e
adolescentes, de mulheres que morrem em mesas de cirurgia plástica, que se
matam em academias, que aplicam botox, silicone etc.
Na música, vemos a desvalorização do feminino com
“tchans” “ tatis-quebra-barraco”, dancinhas da garrafa, da manivela, isso para
citar óbvio. Mas os piores exemplos são a veiculação insidiosa para a
manutenção da ordem. As mensagens subliminares, aquilo que não é dito, mas é
mostrado, é exemplificado e instituído pelas novelas, pelas musica, pela
internet, enfim, pelos veículos de comunicação.
Temos exceções como o filme Shrek, apesar da transgressão,
ali estar muito diluída pelo elemento cômico), O amor é cego ( com Jack Blak e
Gwineth Paltrow, mas caímos caso de Shrek, o cômico dilui a transgressão).
NO Brasil o grande avanço começou no fim dos anos setenta
e expandiu-se nos anos 80, especialmente na literatura infantil e juvenil, com escritoras
como Sylvia Orthoff, Marina Colassanti, Ruth Rocha, que escreveram livros cujo
tema colocava em cheque os papéis masculino e feminino. Temos o excelente Jorge
Miguel Marinho, professor da USP, que escreve crônicas para jovens que levam a
reflexão, numa tentativa de reverter a alienação.
Na Literatura temos exemplos de grandes escritoras:
Começo com Simone de Beauvoir, feminista, esposa de Jean Paul Sartre, cuja
contribuição para a causa feminina foi essencial. Aqui no Brasil temos Clarice
Lispector, Cecília Meireles, Raquel de Queiroz . Mais recentemente, falemos de
Martha Medeiros, cujas crônicas são libelos a favor não da mulher, apenas, mas
desse sistema de parceria primordial de que fala Riane Eisler. Temos Fernanda
Young, responsável pela série “ Os Normais”, e escritora de bons livros
voltados para o feminino. Isso fora as escritoras e batalhadoras anônimas em
prol não da supremacia do feminino mas do respeito a ele. Do resgate de uma
sociedade cooperativa e não exclusivista.
E qual a salvação, enfim? Como chegar num mundo onde haja
valores, sim, pois o conceito de bem e mal é o motor da existência, mas um
mundo onde não reste espaço para o maniqueísmo, para a ruptura e sim para a
cooperação?
Educação. Em especial a familiar e mais especialmente a
educação materna. Nós mulheres temos que amamentar nossas filhas e,
principalmente, nossos filhos não apenas com o leite, mas temos que dar-lhes o
alimento da reestruturação de valores, a recuperação do respeito entre seres
humanos. Um homem começa a aprender a lidar com o feminino através de sua mãe.
Despeço-me com Rita Lee/Zélia Duncan, na voz de Maria Rita:
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